Descrição de chapéu Fake News

Entenda como fake news, fim do mundo e alienígenas se misturam na arte da Covid

Exposição a partir do clássico 'A Guerra dos Mundos' e novos filmes escancaram as crises políticas e climáticas atuais

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Ilustração de nave alienígena invadido a Terra

Ilustração de Alvim Corrêa para o livro 'A Guerra dos Mundos', de H.G. Wells, que faz parte de mostra na Pinacoteca Reprodução fotográfica/Isabella Matheus

São Paulo

O escritor H. G. Wells começa seu clássico de ficção científica "A Guerra dos Mundos", de 1898, indicando que "ninguém teria acreditado" naquela história. O que o autor apresentava como pouco crível era a invasão marciana narrada nas próximas páginas, com máquinas gigantes amedrontando e aniquilando terráqueos.

"Ninguém pensou nos mundos mais antigos do espaço como fontes de perigo humano", escreveu ele algumas linhas para frente. Por ora, a tomada extraterrestre da Terra ainda está no campo do inverossímil, mas uma série de outras catástrofes e guerras que podiam parecer improváveis se tornaram bem reais.

Ninguém teria acreditado na série de invasões coloniais que estão nas entrelinhas de "A Guerra dos Mundos", na crise climática que poria em xeque extensões quilométricas de regiões costeiras, ou ainda num vírus que deixaria o mundo todo em confinamento, de máscara e se lambuzando com álcool em gel.

​Quem organizou a estética de ficção científica que representa essa guerra com o desconhecido foi Henrique Alvim Corrêa, brasileiro que fez sua carreira na Bélgica. As ilustrações que ele fez para "A Guerra dos Mundos" na virada para o século 20 agora são o centro de uma exposição na Pinacoteca que reúne outros dez artistas contemporâneos.

As obras levantam debates sobre o colonialismo, a imigração e ficções criadas a partir de cosmologias de povos originários que extrapolaram o tempo de Corrêa. São discussões, aliás, que transbordam o ambiente das artes visuais e estão numa série de filmes recentes. O que todos parecem escancarar é que nós vivemos guerras de todas as ordens. Será que elas vão, afinal, nos levar para o fim do mundo?

"Criamos a partir dessa relação de Corrêa com o imaginário da disputa entre espécies terrestres e extraterrestres, de um subtexto que o livro traz do colonialismo, da dominação, da eugenia. São temas que estão latentes nessa virada do século e que hoje ainda são fortes para nós", diz Fernanda Pitta, que organiza a mostra.

Enquanto o maquinário gigante de Wells acaba com a vida na terra de maneira dramática nas gravuras de Corrêa, o artista Runo Lagomarsino reúne em "Contos do Submundo" uma série de caixinhas com insetos estudados por um museu de Berlim.

Aqueles animais desconhecidos pelos alemães, dispostos em cima de recortes de jornais com notícias sobre imigração, são analisados até que se descubra como controlar essas pragas estrangeiras —ou seja, como exterminar aquele grupo estranho.

Luiz Roque inventa uma distopia quase etérea em "Zero", um registro de um cachorro que vaga num tempo e espaços inabitados, sem fim.

Pitta afirma que a época em que Corrêa viveu, na virada para o século 20, era imbuída de um certo decadentismo, de uma ideia de recomeço e também de fim de mundo, que conversava com movimentos literários da época. É um clima que, para ela, retorna nos dias de hoje.

"Vivemos uma época que parece que reavivou tudo isso, nos damos conta de que a dominação, o conflito, a guerra são presentes, não são do passado. Essa ideia da história de que a gente melhora, de que vamos para uma direção mais pacífica caiu por terra", diz ela. "A gente está no caos."

E há reações a esse caos. O peruano Fernando Gutiérrez Huanchaco imagina uma religião criada por extraterrestres que pregam uma unidade latino-americana e anticapitalista —o som das orações ecoam numa instalação criada no meio do deserto com uma espécie de aparelhagem futurista.

Denilson Baniwa, um dos principais nomes dessa onda de artistas indígenas contemporâneos no Brasil que tem ganhado destaque no circuito oficial de arte, retoma suas ficções decoloniais num vídeo feito para a mostra. Ele discute a revolta da natureza contra a invasão e exploração do território yanomami e da Amazônia pelo garimpo.

Essa tônica de denúncia de um fim de mundo —muitas vezes permeado por propostas de uma outra existência possível na Terra— também atravessou obras apresentadas na Bienal de São Paulo. A mexicana Naomi Rincón Gallardo, por exemplo, fabulou criaturas meio bicho, meio homem que revivem mitos pré-colombianos num baile sobre escombros.​

Não é só o universo das artes visuais, por vezes com um discurso hermético, que tem gritado que vivemos num ensaio de fim de mundo. Negacionistas, fake news e discursos ambientalistas furados também atravessam a indústria do audiovisual e do entretenimento.

"Não Olhe para Cima", que estreou na Netflix com astros como Leonardo DiCaprio, Meryl Streep e Cate Blanchett, reavivou as discussões sobre a ideia de polarização política, da histeria coletiva em torno de catástrofes e até do risco de ter no comando de um país quem não acredita na ciência diante de um perigo à existência humana na Terra.

O longa sobre cientistas que tentam alertar para a chegada de um meteoro caçoa insistentemente de figuras que amplificam o cenário de caos, como os bilionários excêntricos que pretendem salvar o mundo, apresentadores de programas de TV que querem soar sempre leves e positivos e alavancam subcelebridades superficiais.

A organizadora da mostra na Pinacoteca, aliás, lembra que "A Guerra dos Mundos" também está atrelada a ideia de boataria que se tornou uma indústria de notícias falsas —é famosa a passagem de que houve reação histérica da população após transmissões do romance na rádio, tanto no Reino Unido quanto no Brasil anos depois.

Outro filme lançado no final de 2021 a tratar do fim do mundo é "A Última Noite", com Keira Knightley e Matthew Goode, que resolvem reunir a família no interior da Inglaterra para esperar a destruição total da humanidade, como consequência da crise climática.

Não que essa seja uma temática nova para o cinema. Humberto Neiva, diretor do curso de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap, lembra que uma série de filmes bíblicos abordam pestes e catástrofes naturais, num longo arco que passa por diretores como Ingmar Bergman com o jogo de xadrez com a morte que acontece num contexto de epidemia, ou o ainda mais contemporâneo "Contágio", do diretor Steven Soderbergh.

"O cinema sempre elabora questões que são uma interseção entre os acontecimentos do cotidiano com premonições para o futuro", diz ele. "São, de certa maneira, mentiras que trazem discussões profundas e urgentes."

Fernanda Pitta lembra ainda que a literatura decolonial, como a produzida pela portuguesa Grada Kilomba e pela brasileira Jota Mombaça, tem apontado que há certos tipos de corpos que vivem em constante reação para sobreviver.

Ao tratar do que ninguém teria acreditado, a organizadora da mostra também selecionou um conjunto de desenhos eróticos que Alvim Corrêa fez até sua morte, em 1910.

Há ali um aspecto decadente, que beira o sombrio e o macabro. Mas os retratos de prazer que Corrêa cria de vários corpos femininos não deixam esquecer que, no meio de todas essas guerras, há um jogo incontornável que corre pelas frestas em qualquer época e em qualquer circunstância —as disputas entre pulsões de morte e de vida, do desejo e da dominação, da violência e do erotismo. Esse embate nem mesmo o negacionismo estúpido é capaz de encerrar.

Ninguém Teria Acreditado: Alvim Corrêa e 10 Artistas Contemporâneos

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