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Nem branco nem classe média: novos livros questionam História e conquistas do Feminismo

Autoras defendem que vozes de mulheres não brancas foram silenciadas, mas que são justamente elas que tornam o movimento global e inovador
Multicultural. Afegãs protestam pela preservação dos direitos de meninas e mulheres depois da volta do Talibã: “Aspecto local é razão do feminismo ser inovador”, diz historiadora Lucy Delap Foto: STRINGER / REUTERS
Multicultural. Afegãs protestam pela preservação dos direitos de meninas e mulheres depois da volta do Talibã: “Aspecto local é razão do feminismo ser inovador”, diz historiadora Lucy Delap Foto: STRINGER / REUTERS

Diz a História oficial que o feminismo viveu quatro grandes ondas. A primeira, iniciada na segunda metade do século XIX, corresponde à luta pelo sufrágio. A segunda, a partir dos anos 1960, aos movimentos de liberação e à busca de igualdade jurídica e social. Nos anos 90, a terceira trouxe novas discussões sobre identidade, gênero e sexualidade. Hoje estamos na quarta, marcada pelo uso massivo dos meios digitais, sobretudo para combater as diferentes formas de violência contra a mulher . E é justamente nesse presente que três livros questionam: será que a história feminista é mesmo tão recente, tão facilmente demarcada no tempo e tão euro-americana e branca?

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— Eu não uso essa divisão em ondas — explica a historiadora britânica Lucy Delap, autora de “Feminismos: uma história global”, que a Companhia das Letras lançará em 18 de fevereiro. — Qualquer tentativa de periodização é difícil de aplicar em contextos diferentes. E dizer que o século XIX inaugura o feminismo é ignorar, por exemplo, os extraordinários debates de gênero motivados pela industrialização e as mudanças econômicas ocorridas no século XVIII.

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Interseccionalidade

Essa discussão — que envolve sororidade, racismo e privilégios, colonialismo, interseccionalidade e reprodução de estereótipos pela mídia — é pautada sobretudo em torno do questionamento à centralidade branca na história feminista. Uma centralidade que terminou por excluir mulheres não-brancas do discurso, das decisões e, por fim, das políticas públicas conquistadas.

— Temas como interseccionalidade e multiculturalismo estão em pauta há décadas, mas o debate feminista não muda e nós não saímos do lugar. É preciso dizer que para a maioria das mulheres do mundo, e essa maioria não é branca, se o feminismo não for inclusivo, ele não tem relevância — afirma a advogada paquistanesa Rafia Zakaria, autora de “Contra o feminismo branco”, lançado pela Intrínseca.

“É ridículo pensar que, se discutirmos raça e classe, vamos ceder aos homens o que conquistamos até agora”

Rafia Zakaria
advogada paquistanesa e autora de 'Não ao feminismo branco'

No livro, ela analisa do colonialismo europeu no século XIX até o trabalho das organizações humanitárias nos dias de hoje e desenha um panorama do que chama de “maneira condescendente como mulheres brancas tratam as outras, sobretudo as pobres”.

— As sufragistas queriam votar, mas se aliaram aos homens na oposição aos movimentos de libertação colonial. Elas não entenderam que as indianas também queriam votar em nações independentes. Hoje, pessoas brancas reunidas em uma sala tomam decisões que afetam as vidas de mulheres sobre as quais nada sabem. Não somos ouvidas — diz.

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Ser ouvida e reconhecer narrativas sobre suas experiências foi o que fez a jornalista Koa Beck deixar redações de publicações femininas nos EUA e escrever “Feminismo branco: das sufragistas às influenciadoras e quem elas deixam para trás”, da Harper Collins.

— A mídia americana não tem nuance quando se trata de gênero e classe, e eu vi mulheres negras se perguntando o que fazer diante de pautas como “liderança feminina nas grandes corporações”. Elas são invisíveis, mesmo em movimentos como a Marcha das Mulheres ou o #MeToo— diz Beck, para quem o feminismo branco se tornou uma ideologia capaz de levar outras mulheres a aspirarem à branquitude, mas que nada faz para alterar as estruturas misóginas e racistas. — É uma ideologia hierárquica e meritocrática. Não é disruptiva das estruturas patriarcais, até porque para essas mulheres as necessidades básicas foram resolvidas. Não são elas que vão questionar o poder.

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Beck e Zakaria concordam que esse feminismo, que a teórica americana Chela Sandoval chamou de “feminismo hegemônico”, tem conquistas inegáveis, mas trata muito mais das vidas de mulheres ocidentais, brancas e de classe média. Além disso, ele se transformou numa ideologia baseada na ocupação de espaços masculinos e não na interseccionalidade de raça, classe, gênero e território — apesar desses temas estarem há décadas nos trabalhos de teóricas negras estudadas em todo o mundo, como Kimberlé Crenshaw, bell hooks , Angela Davis e Patricia Hill Collins .

— É ridículo pensar que, se discutirmos raça e classe, vamos ceder aos homens o que conquistamos até agora — diz Zakaria, cujo livro foi rechaçado por Hillary Clinton. — Ela disse que o foco das mulheres tem que ser a luta contra os homens.

Local. Protesto de mulheres na Índia: “Se feminismo não for inclusivo, não tem relevância”, diz autora Rafia Zakaria Foto: Arko Datta / AFP
Local. Protesto de mulheres na Índia: “Se feminismo não for inclusivo, não tem relevância”, diz autora Rafia Zakaria Foto: Arko Datta / AFP

Vozes silenciadas

Lucy Delap, cujo livro aborda 250 anos de história feminista ao redor do mundo, diz que o movimento de mulheres floresceu graças a interações globais, mesmo muito antes da comunicação em redes. Mas que as relações de poder amplificaram apenas algumas vozes.

— Se ouvirmos as vozes silenciadas, encontraremos uma história do feminismo bem diferente — diz Delap, para quem pensar o movimento globalmente é também pensar os seus limites. — As mulheres da Guatemala, por exemplo, são perfeitamente capazes de estabelecer suas prioridades e desenhar suas políticas. E esse aspecto local é uma das razões de o feminismo ser um dos movimentos políticos mais inovadores do mundo.

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A discussão é complexa e não para aqui. Nos EUA, foi lançado “The trouble with white women: a counterhistory of feminism” (O problema com as mulheres brancas: uma contra história do feminismo, ainda sem edição brasileira), da pesquisadora em Literatura e Gênero Kyle Schuller. Ainda este ano, a escritora britânica Bernardine Evaristo, autora do celebrado “Garota, mulher, outras”, lançará “Feminism”, livro comissionado pela Tate Britain sobre a visão das mulheres negras sobre o feminismo.

Serviço:

“Feminismo branco: das sufragistas às influenciadoras e quem elas deixaram para trás”. Autora: Koa Beck. Tradução: Bruna Barros. Editora: Harper Collins. Preço: R$ 49,90.

“Contra o feminismo branco”. Autora: Rafia Zakaria. Tradução: Solaine Chioro e Thaís Britto. Editora: Intrínseca. Preço: R$ 49,90.

“Feminismos: uma história global.” Autora: Lucy Delap. Tradução: Isa Mara Lando e Laura Teixeira Motta. Editora: Companhia das Letras. Preço: R$ 84,90.