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BRIZOLA, 100 ANOS

Memórias da infância explicam aposta de Brizola na educação

Leonel Brizola na campanha de 1989, com Beth Carvalho e Neusa Brizola

Leonel Brizola era um grande contador de histórias, mas fugia de depoimentos formais para a posteridade. “Na verdade, vivo muito mais preocupado com o futuro, com os projetos, do que com o passado”, justificava-se. Em abril de 1996, ele abriu uma exceção em sua cidade natal. Falou por mais de quatro horas a pesquisadores de Carazinho (RS), onde nasceu há cem anos, em 22 de janeiro de 1922.

Inédita até hoje, a conversa tratou da infância e da juventude do político, que perdeu o pai com 1 ano de idade. O camponês José Brizola foi morto num dos embates sangrentos entre chimangos e maragatos. “Eu me criei sob o signo desse fato, a morte do velho”, desabafou.

A mãe, Oniva, convenceu os cinco filhos a não buscarem vingança. “Não sei sinceramente se ele foi fuzilado, naquela época davam um tiro na testa ou na nuca. Ou se foi degolado”, disse Brizola. “Sempre me recusei a encarar esse assunto. Nunca quis que o povo riograndense imaginasse que eu estava querendo me vingar”, explicou.

A vida era dura no interior gaúcho. Até os 7 anos, o guri nunca havia calçado sapatos. Aos 11, foi apresentado a uma escova de dentes. A família se mudou para Passo Fundo, onde ele batalhou trocados num açougue. De manhã, ao sair para as entregas, invejava as crianças de classe média que estudavam num internato particular.

“Um colégio de colunas, muito bonito. Eu adorava olhar aquilo ali. Às vezes invadia o recinto e me botavam para fora”, recordou. “Eu ia distribuindo carne, levava aqueles ganchos. E aqueles garotos bem arrumadinhos, bem abrigados, indo pro colégio”. Um dia, o menino pobre deu uma topada e foi ridicularizado. “Sangrou, a dor, aquele frio, e o garoto disse: ‘Se foram os bichos de pé!’. Eu não tive dúvida, fui de carne e gancho para cima dele.”

Oniva alfabetizou os filhos (“tínhamos dois livros em casa, passavam de um para outro”), mas insistiu que buscassem educação formal. “A velha sempre querendo que eu estudasse, ela me botou na cabeça isso”, contou Brizola. De volta a Carazinho, ele procurou o colégio de um pastor metodista. Propôs ajudar na faxina em troca de vaga e lugar para dormir. “Foi um período áureo da minha vida”, lembrou. “Fui me civilizando ali.”

O guri arrumou novos bicos. Foi engraxate, carregador de mala, vendedor de jornal. “Depois de mil andanças, acabei indo para Porto Alegre. Fiquei quase um ano na rua, trabalhando nas piores condições”, narrou. Aos 14, conseguiu passar para uma escola técnica. Na hora da matrícula, mais problemas: não tinha certidão de nascimento nem dinheiro para o enxoval. “Foi uma saga”, resumiu.

Na capital gaúcha, o jovem Brizola trabalhou como ascensorista, operário e jardineiro. Depois passou para a faculdade de Engenharia, onde se encantou com o getulismo. Aos 25, elegeu-se deputado estadual pelo PTB. Era o início de uma carreira política de quase seis décadas, só interrompida pelos 15 anos no exílio.

Em 1958, o trabalhista chegou ao governo gaúcho com o lema “Nenhuma criança sem escola”. Construiu seis mil colégios públicos, as chamadas “brizoletas”. Mais tarde, ergueria 500 Cieps no Rio de Janeiro. Projetados por Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, os “brizolões” ofereciam alimentação, assistência médica e ensino em tempo integral. Depois seriam sucateados por sucessivos governos fluminenses.

Morto em 2004, Brizola não desperta mais as críticas apaixonadas do passado. Seu legado é disputado nas urnas, e até adversários o reconhecem como o político brasileiro mais identificado com a causa da educação. A luta dos primeiros anos ajuda a entender como tudo começou.

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