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Cultura

O que é NFT, o certificado digital que já movimenta milhões no mercado das artes

No admirável mundo novo da criptoarte, coleções digitais com selo de autenticidade batem recordes em leilões e atraem artistas
Colagem digital do artista Beeple foi vendida pelo recorde de 69,3 milhões de dólares neste mês Foto: HANDOUT / AFP
Colagem digital do artista Beeple foi vendida pelo recorde de 69,3 milhões de dólares neste mês Foto: HANDOUT / AFP

Em dezembro, o designer gráfico americano Beeple — até então desconhecido no cenário internacional — vendeu uma coleção de imagens digitais por US$ 3,5 milhões (R$ 19,6 milhões). Foi um espanto. Nem ele soube explicar. No início de março, um colecionador de Miami faturou US$ 6,6 milhões (R$ 37 milhões) ao revender um vídeo de Beeple de apenas dez segundos. Não parou por aí. Na semana passada, o americano da Carolina do Sul superou todas as expectativas da bicentenária Christie’s: sua peça “Everyday — The first 500 days” foi leiloada por US$ 69 milhões (R$ 391 milhões). A colagem virtual só pode ser medida em pixels (21,069 x 21,069), e foi vendida em forma de NFT (token não fungível, na sigla em inglês) para um comprador de codinome MetaKovan, que investe em obras tokenizadas. Confuso? Bem-vindos ao mundo da criptoarte, um terremoto global que já faz tremer também o mercado brasileiro.

O recorde de Beeple evidenciou o apetite pela arte digital, que ficou ainda maior com a pandemia. Com galerias fechadas e exposições proibidas, criações produzidas virtualmente foram abraçadas com fúria por quem pode consumir objetos artísticos na casa dos milhões, mas também por quem cria arte de forma não tradicional, intangível, e não teria espaço numa galeria física. É só o começo de uma revolução.

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Em abril, a Sotheby’s, grande rival da Christie’s, vai leiloar uma coleção virtual de um artista anônimo, conhecido como Pak. O CEO do Twitter, Jack Dorsey, colocou à venda seu primeiro tuíte, de 2006. O martelo (digital) será batido amanhã, com a renda revertida para uma ONG africana. O lance mais alto superou US$ 2,5 milhões (R$ 14 milhões). Já a cantora Grimes arrecadou recentemente US$ 6 milhões (R$ 34 milhões) em 48 horas com um leilão de uma coleção de vídeos que duram segundos, enquanto o grupo Burnt Bansksy, que se define como um coletivo de amantes da tecnologia e da arte, queimou uma gravura de Banksy numa live no Twitter e leiloou a cópia digital pelo triplo do preço da original. Também há espaço para obras digitais “de época”, como o meme vintage Nyan Cat, vendido recentemente.

— É apenas a ponta do iceberg — confirma o canadense Trevor Jones, ele próprio um expoente da criptoarte, que em fevereiro vendeu 4.157 edições digitais da sua obra “Bitcoin Angel”.

A obra "Bitcoin Angels", do artista Trevor Jones Foto: Divulgação
A obra "Bitcoin Angels", do artista Trevor Jones Foto: Divulgação

Em sete minutos, Jones juntou US$ 3,2 milhões (R$ 18 milhões). O que os compradores levam não são peças que possam ser penduradas na parede. Eles adquirem um NFT — certificado de autenticidade de um objeto digital, um vídeo, um gif, um áudio ou, como no caso de Beeple, um jpg que reúne imagens postadas pelo autor desde 2007. Os itens virtuais continuam na rede, mas passam a ter um único dono, graças a uma tecnologia de registro distribuído, ou blockchain, outra palavra essencial do sempre mutante dicionário da era digital. O NFT é uma assinatura única para comprovar que aquela peça é autêntica e escassa. O certificado não pode ser copiado, mas tem alta liquidez.

Cada vez mais complicado? Não é simples, admite Jones, hoje baseado na Escócia. Ele seguia um caminho convencional nas artes plásticas até que mergulhou no universo das criptomoedas, como o Bitcoin, e passou a explorar o tema em suas peças. Apesar de não entender muito bem o que era um NFT, via no Twitter artistas emergentes explorando a tecnologia e seguiu a onda.

— Há apenas dois anos, havia um grupo pequeno de interessados. Embora houvesse alguns grandes compradores, na maioria das vezes eram artistas comprando o trabalho de outros artistas e, assim, a comunidade cresceu de forma bastante orgânica — explica ele, acrescentando que a chegada de colecionadores com alto poder aquisitivo deixou o mercado irreconhecível.

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Críticos de arte consideraram pura especulação o fato de a obra de Beeple ter alcançado o terceiro maior valor já pago pelo trabalho de um artista vivo, atrás apenas de Jeff Koons e David Hockney . “O sucesso do leilão pode ser saudado como um triunfo do marketing e da manipulação, mas não tem absolutamente nada a ver com valor artístico”, escreveu Sebastian Smee, do “Washington Post”.

Especulação ou prestígio?

Assim é o capitalismo on-line: turbinado por empresas que valem bilhões e não criam produtos tangíveis. Para o pesquisador Paul Ennis, especialista em criptomoedas da University College Dublin, as cifras da criptoarte não são surpresa.

— A arte de Beeple não vale US$ 69 milhões, mas isso não me choca. Há multimilionários no mercado das criptomoedas e eles acabariam competindo pela arte em NFT. Não acho que a palavra certa seja especulação, mas prestígio. Não é muito diferente de um corretor de Wall Street que tem um Picasso e um Matisse — diz, ressaltando, no entanto, que a maioria das transações continuará acontecendo de forma bem mais modesta.

Obra com NFT que a Sotheby's vai leiloar do artista Pak Foto: Divulgação
Obra com NFT que a Sotheby's vai leiloar do artista Pak Foto: Divulgação

Mas o hype em torno das obras criptografadas vai continuar. A Christie’s confirma que outros leilões virão em breve.

— Nossos colecionadores tradicionais estão tão interessados em NFTs quanto a geração dos millennials. Os tokens refletem a evolução da arte, assim como aconteceu com a arte abstrata há cem anos — disse ao GLOBO Alexandra Kindermann, diretora de comunicação da Christie’s.

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Alguns itens digitais têm valor como “antiguidades”, como o meme vintage Nyan Cat, criado há uma década e vendido recentemente por US$ 600 mil (R$ 3,3 milhões) em Ethereum, uma moeda digital. Essas negociações vêm consagrando plataformas como Niio, Nifty Gateway, Makers Place e Open Sea, que comercializam NFTs. Entre as estrelas desse novo mundo está a série “CryptoPunks”, milhares de personagens criados por algoritmos, que viraram febre entre jovens empresários do Vale do Silício. O “CryptoPunk” número 7804 é até agora o mais caro: US$ 7,6 milhões (R$ 43 milhões).

Segundo Paul Ennis, da Universidade de Dublin, o fato de que os compradores não almejam ter uma obra concreta não significa que a arte tradicional vá morrer, junto com galerias físicas.

— Não acredito que esse mercado mudará completamente a arte ou fará com que as pessoas se concentrem só no que é digital. Será uma arte que coexistirá com o que já temos. Mas, para os que criam arte  exclusivamente digital, imagino que os NFTs se tornem o padrão — aposta.