Saúde Coronavírus

Ministério da Saúde rejeita protocolo contra uso do ‘kit Covid’

Decisão do secretário pró-cloroquina Hélio Angotti Neto foi publicada nesta sexta-feira no Diário Oficial da União; Conass diz que decisão é mais uma 'inovação' negacionista do governo
Comprimidos de hidroxicloroquina, medicamento ineficaz para tratamento da Covid Foto: George Frey/Reuters
Comprimidos de hidroxicloroquina, medicamento ineficaz para tratamento da Covid Foto: George Frey/Reuters

BRASÍLIA — O Ministério da Saúde rejeitou protocolo aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) que contraindica o uso do “kit Covid” ou tratamento precoce, comprovadamente ineficaz contra a doença, em pacientes em regime ambulatorial, ou seja, que não estão internados.

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A decisão, publicada nesta sexta-feira no Diário Oficial da União, é assinada pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde,  Hélio Angotti Neto. No documento, ele justifica que a deliberação foi baseada por uma nota técnica assinada por ele mesmo. Olavista declarado, Angotti é conhecido internamente no Ministério da Saúde por tentar promover medicamentos cuja ineficácia é comprovada.

De acordo com o documento,  “do ponto de vista bioético e humanístico” é preciso utilizar “todos os recursos que mostrarem um nível aceitável de segurança junto a uma expectativa de bem para o paciente”. Menciona  também que o trabalho das diretrizes deve ser “periodicamente revisto e atualizado”. A nota técnica tem 45 páginas e questiona a qualidade do parecer técnico aprovado pela Conitec.

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A nota cita ainda a  “possibilidade de falhas metodológicas inadequadamente avaliadas, resultados das consultas e audiências públicas, e também falta de consenso do plenário da Conitec" como argumentos para a decisão. No rol de medicamentos incluídos no documento da Conitec como ineficazes estão cloroquina , hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.

Há ainda possibilidade de recurso em um prazo de dez dias. Neste caso, a decisão cabe ao ministro da Saúde. O documento foi elaborado por um grupo de pesquisadores renomados e com ampla experiência em pesquisa, entre eles o pneumologista Carlos Carvalho, da USP. Ao GLOBO, Carvalho afirmou que o grupo deve se reunir neste fim de semana para elaborar o recurso.

— Queremos ouvir a opinião do ministro, que tem o parecer do Hélio, que é contràrio à política, e o nosso. Vamos deixar o ministro decidir. Vamos responder ponto a ponto os questionamentos feitos para informar ao ministro qual a nossa visão. Vamos esperar que ele entenda e seja tomada decisão que achar mais adequada para a saúde do país — disse Carvalho.

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Em entrevista nesta sexta-feira, o secretário justificou que foi feita uma avaliação global envolvendo diversos elementos e que o cenário da pandemia ainda é “muito complexo”, evoluindo dia a dia com novidades. Segundo ele, as recomendações da Conitec não atendem o nível de rigor que é exigido.

— Há  alguns elementos de fragilidade no processo — afirmou, citando que as  diretrizes terapêuticas, por exemplo, não contemplam todos os requisitos necessários.

Hélio Angotti pontuou que foi considerado também o processo de votação na Conitec, que teve votação apertada, foram sete votos a seis. Segundo ele, também houve “vazamento de informações”.

— É um processo que passou por momentos de grande tumulto, vazamento de informações, isso pode ter pressionado membros da Conitec,  por exemplo. E essa pressão pode influenciar no processo decisório interno — disse o secretário.

Conass critica decisão

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que integra a Conitec, criticou a decisão "inédita"do ministério. Em nota, afirma que a portaria é mais uma  “inovação” negacionista do governo.

“Diante do expressivo aumento de casos de Covid-19 em decorrência da variante Ômicron, é inaceitável que o Brasil ainda não tenha tais diretrizes em vigor”, diz a entidade defendendo o “respeito às melhores evidências científicas”.

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No texto, o Conass destaca também que “continuará lutando contra o negacionismo e as agressões ao SUS e a suas instituições”.

Carlos Lula, presidente do Conass, classificou a decisão como um "absurdo sem tamanho". "Um Ministério da Saúde contra a ciência. Inacreditável", escreveu em rede social.

Cientistas e entidades científicas devem apresentar recurso á decisão. Entre elas, devem estar a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).

Pressão na Conitec

O relatório da Conitec foi aprovado no começo de dezembro, marcado por muita pressão. O documento informa que poucas medicações são efetivas no tratamento contra a Covid-19 para pacientes ambulatoriais, exceto os remédios de anticorpos monoclonais.

Em outubro, quando o colegiado se reuniu pela primeira vez e houve empate na votação, sem a  presença da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na segunda votação, com a Anvisa presente, o representante da agência desempatou a decisão ao votar a favor do parecer que contraindica o "Kit Covid". Na ocasião, votaram a favor do parecer técnico: a Anvisa, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Conselho Nacional Saúde (CNS); o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass); o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (Sctie) do Ministério; a Secretaria de Vigilância em Saúde.

Contrários ao parecer, ficaram a Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde e as secretarias de Saúde Indígena (Sesai), de Atenção Primária à Saúde (Saps), de Atenção Especializada à Saúde (Saes)e de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), além do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Após se posicionar a favor do parecer técnico e contra a opinião do secretário Hélio Angotti, a representante da Sctie no colegiado, Vânia Canuto, foi perseguida pelo chefe. A exoneração de Canuto foi barrada pelo ministro Marcelo Queiroga.

A Conitec já não recomendava desde maio o uso desses medicamentos para quem estivesse hospitalizado. A comissão tem 13 integrantes, sendo a maioria do Ministério da Saúde.