Descrição de chapéu

Veto a 'Com Açúcar, com Afeto' rouba um pouco da nossa humanidade

Texto literário, como é o caso da canção de Chico Buarque, é lugar de compreender e pensar, não julgar e condenar

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Regina Dalcastagnè

Professora de literatura brasileira da Universidade de Brasília (UnB)

Todo texto literário que se preze oferece ao leitor ou leitora uma abertura para diferentes possibilidades de interpretação. E pouco importa se o autor ou autora estava ciente de cada uma das alternativas ao escrever. Só assim o texto pode pretender abarcar algo da complexidade do mundo e das relações que estabelecemos enquanto estamos por aqui.

A canção "Com Açúcar, com Afeto", de Chico Buarque, é um exemplo disto. Composta em 1967, quando o autor tinha 23 anos de idade, foi encomendada por Nara Leão, que queria uma música sobre "uma mulher sofredora".

Temos então, na primeira pessoa de uma dona de casa, a exposição dos sentimentos contraditórios de uma mulher que vê o marido sair de casa para o trabalho pela manhã e sabe que ele passa o dia nos bares, conversando com os amigos e olhando as pernas das moças que andam pelas ruas. Quando ele volta, cansado e pedindo perdão, ela o acolhe em seus braços e com comida.

Chico Buarque e Nara Leão, ambos em pé, dividem o microfone em foto de 1967
Nara Leão canta 'Para Ver a Banda Passar' com Chico Buarque em fotografia de 1967 reproduzida na biografia 'Ninguém Pode com Nara Leão', de Tom Cardoso - Reprodução

Poderíamos buscar o modo como a música foi recebida à época, por outra geração, em outro contexto e com outras preocupações, mas basta observar algumas leituras possíveis no presente. A primeira delas —porque vem gerando polêmica— vê machismo na mulher que atura o abandono e até recompensa o marido por isso, tentando "segurar o homem em casa".

Daí a concluir que, ao apresentar essa postura (da qual a mulher, aliás, se mostra consciente), a música estaria endossando o comportamento submisso já é uma outra história. Afinal, a representação pode lançar luz sobre as contradições do que é representado, levando o leitor ou leitora —ou ouvinte— à reflexão crítica, não necessariamente à adesão.

Ao usar a primeira pessoa, no lugar de uma terceira que tudo sabe, a letra nos convida a compartilhar os sentimentos de quem fala. Podemos lamentar com ela o abandono e a irresponsabilidade do marido, concordarmos ou não com sua estratégia para reconquistar o homem, mas, como leitores com alguma experiência, nos textos ou mesmo na vida, sabemos que estamos ouvindo apenas uma parte da história.

Muito mais do que do homem, a canção fala das expectativas dessa mulher em relação a ele e ao casamento. Expectativas que são construídas socialmente, como resultado de séculos de domesticação. Ela parece viver a fantasia da família pequeno-burguesa, com um homem provedor que supriria as suas necessidades tanto econômicas quanto afetivas. Como nem tudo funciona de acordo com o esperado, surgem as frustrações, que abalam a relação e afastam o casal.

Mas ela ainda o ama, diriam alguns. Sim, de seu jeito torto e triste, essa continua sendo uma história de amor. Ou vamos negar a essa mulher possível, porque constituída dentro desta sociedade atravessada pela dominação, a capacidade ou mesmo o direito de amar? O que não quer dizer que dê para sair por aí entoando que o amor "tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta".

O amor não purifica todas as relações que toca, não abole os constrangimentos sociais. Nem é isso que a personagem está dizendo. Pelo contrário, ela reclama, duvida do marido, até debocha de sua imaturidade quando diz que ele volta feito criança para chorar o seu perdão.

A dona de casa insiste, ao longo da narrativa, que sabe o que o marido está fazendo —nada de muito comprometedor além de vadiar por aí—, descreve o que ele está vendo e até o que sente a cada instante, embora ela esteja fechada em casa, preparando seu doce predileto. Como não lembrar aqui os narradores de Machado de Assis, que ao mesmo tempo em que afirmam sua verdade nos deixam ver suas fraturas? Afinal, nada sabemos desse homem além do que ela escolhe nos contar.

Levando a desconfiança ao extremo (e Machado ajudou a nos construir como leitores e leitoras que suspeitam), podemos até nos perguntar se ele se comporta, mesmo, desse jeito, ou, indo ainda mais longe, se ele de fato existe. Se tudo não passa de uma encenação, com uma mulher cantarolando pela casa e beijando um retrato qualquer.

Caso voltemos a atenção para o que é de algum modo ausência no texto, ou seja, o homem, outras especulações se sobrepõem. O que ele espera, afinal, de sua mulher, e como ele se adequa ou reage ao seu papel de gênero? Caberia perguntar também por que ele para no caminho do trabalho, desviando de sua função de provedor e vivendo uma alegria mais ou menos. Com o que ele poderia sonhar para além da porta de sua casa e do doce que que ela acha que o agrada? Por que volta tão maltrapilho e maltratado?

Juntando aqui outra canção de Chico Buarque, talvez ele fosse mais feliz fazendo samba e amor até mais tarde, com sua companheira, ignorando a correria da cidade e a buzina da fábrica. É um trabalhador, afinal, explorado e provavelmente mal pago. Embora não fale, há uma outra existência nesse texto, que acena distante aos leitores, leitoras e ouvintes. Um indivíduo, que, se é também representação de um grupo privilegiado, ainda pode contar com uma história própria e cheia de contradições.

Um texto literário, como uma canção, uma história em quadrinhos, um romance, pode ser abrigo para outras experiências, que expandem nossas próprias vidas, para outros modos de desafiar o mundo ou de se submeter a suas regras. Pode ser um espaço onde diferentes gerações se encontrem, ainda que discordando de ações e gestos. Pode ser, também, um lugar de compartilhamento de alegrias e dores, de afetos, um lugar a ser pisado com o sapato de outro ou outra. Para compreender e pensar, não necessariamente para julgar e condenar.

É entender que a vida, com todas as suas emboscadas, às vezes atrapalha. Por isso, o veto a uma obra literária será sempre um estreitamento dos possíveis, o roubo de um pouco de nossa humanidade.

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