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Cultura Cora Rónai

O horror e a vergonha

De qualquer ângulo que se olhe, a situação dos habitantes do Congo é inaceitável. Não deveria ser difícil para um país ser melhor do que isso, mas o Brasil falhou

Lotsove Lolo Lavy Ivone deixou o Congo em 2014, por causa da guerra civil. Num depoimento que deu ao meu colega Rafael Nascimento de Souza, conta que perdeu a mãe e parentes no conflito, e que o pai dos filhos desapareceu, o que numa guerra pode significar várias coisas, todas elas ruins. Ela e os seus são hema, os outros são lendu.

Nós não sabemos nada sobre o mundo e as pessoas com quem cruzamos nas ruas. Quantos de nós ouvimos falar em hemas e lendus? Mesmo quem ainda se lembra de ler sobre os conflitos entre tutsis e hutus e sobre o Genocídio de Ruanda nunca soube deles, que estavam ali ao lado.

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As informações da internet são escassas. Digite o nome de um dos grupos e o outro virá na sequência, associado a palavras como violência, estupro, massacre.

A República Democrática do Congo (RDC), antigo Zaire, ainda mais antigo Congo Belga, fica no meio da África, numa região desestabilizada desde a alucinada colonização europeia no século XIX. Pensem nas piores perversidades, pensem nas fotos de crianças com as mãos decepadas como “castigo” pelos colonizadores, pensem em “Coração das trevas”, de Joseph Conrad; pensem no horror.

O tempo não aplacou a desdita. Nos últimos 30 anos, mais de 5 milhões de pessoas morreram por causa de conflitos armados. Na província de Ituri, onde convivem hemas e lendus, massacres se tornaram tão comuns que praticamente não chegam ao noticiário internacional. Ainda na segunda passada, dia 25, milícias lendu sequestraram cerca de 30 mineiros hema, mas é preciso passar pente fino no Google para saber disso.

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Riquíssimo em recursos naturais, o Congo segue sendo um dos países mais pobres do mundo. Mais de 70% dos seus 100 milhões de habitantes vivem abaixo da linha de pobreza extrema, com o equivalente a R$ 10 por dia; quase 80% não têm acesso a uma alimentação adequada. Um terço das crianças sofre de desnutrição, e uma em cada sete morre antes de completar 5 anos.

O Índice de Capital Humano do país é de 0,37%, um dos mais baixos do mundo. Ele significa que, ao virar adulta, uma criança nascida hoje na RDC terá apenas 37% da produtividade que poderia vir a ter caso tivesse plenas condições de desenvolvimento.

De qualquer ângulo que se olhe, a situação dos habitantes do Congo é moralmente inaceitável.

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Não deveria ser difícil para um país ser melhor do que isso— mas o Brasil falhou, e traiu Lotsove Lolo Lavy Ivone.

O que era para ser uma terra de paz e um porto seguro se revelou tão obsceno quanto o pesadelo que ela deixou para trás. Ver o filho de 24 anos morto a pauladas não era para acontecer aqui, o país bom, o lugar de refúgio.

“Que vergonha! Meu filho que amava o Brasil. Por que eles mataram o meu filho? Moïse tinha todos os amigos brasileiros. Aí vêm os brasileiros e matam o meu filho.”

Vergonha: eis a palavra.

Que vergonha do Brasil, este país onde não há refúgio para nenhum rapaz preto e pobre.

Que vergonha.