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Em eleição de fachada, Nicarágua anuncia vitória de Daniel Ortega com 75% dos votos

Potências ocidentais e vários países latino-americanos condenam votação como farsa; governo brasileiro ainda não se manifestou
Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao lado de sua mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, durante uma mensagem televisionada sobre a eleição Foto: CESAR PEREZ / AFP/7-11-21
Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao lado de sua mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, durante uma mensagem televisionada sobre a eleição Foto: CESAR PEREZ / AFP/7-11-21

MANÁGUA —  Como previsto, Daniel Ortega reelegeu-se sem dificuldades presidente da Nicarágua neste domingo, para o seu o quarto mandato consecutivo, anunciou o Conselho Supremo Eleitoral (CSE), controlado por aliados do governo. As eleições aconteceram após  o ex-guerrilheiro prender e anular a candidatura de todos os seus potenciais rivais, e levou a Casa Branca a sinalizar que usará novas sanções para pressionar por um "retorno à democracia" e eleições livres.

De acordo com o CSE, com 98% das urnas apuradas, o ex-guerrilheiro teve 75,9% dos votos válidos, com participação de 65% dos eleitores. A transparência do pleito, no entanto, é nula, e observadores internacionais foram proibidos de acompanhar o processo. A organização Observatório Cidadão Urnas Abertas, ligada à oposição, estima que a abstenção tenha chegado a 81,5%.

Os opositores haviam pedido à população que protestasse contra Ortega mantendo-se em casa, como se não fosse dia de votação. Líderes de EUA, União Europeia e América Latina não reconheceram o resultado como legítimo.

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Nos últimos meses, Ortega mandou prender seus sete principais adversários na disputa pela Presidência, incluindo sua principal oponente, Cristiana Chamorro. Ele também determinou a prisão de dezenas de críticos, incluindo empresários, ativistas, feministas e jornalistas — desde os protestos de 2018, Ortega brutalmente reprime contestações a seu governo e proíbe a oposição de se manifestar.

Durante todo o domingo, o esforço do governo foi para mostrar um cenário de normalidade e de grande afluência às seções eleitorais. Desde a primeira hora da manhã, as emissoras oficiais tentaram mostrar um país votando em massa e participando da “festa cívica”. Já os meios de comunicação independentes transmitiram imagens com ruas, praças e locais de votação vazios.

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Ortega, que já acumula mais de 25 anos no poder nos últimos 40 anos, e sua mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, votaram no Centro de Manágua. Após a divulgação do resultado, ele falou em cadeia nacional de rádio e televisão por 45 minutos, acusando de golpistas e terroristas os seus opositores, e afirmando ser o único capaz de manter a paz no país:

—  Há quem opte pela guerra, pela violência, terrorismo e pelas calúnias. Querem que o país se veja envolvido em um enfrentamento violento e em uma guerra. A guerra não deixa escolas, a guerra não constrói hospitais, não constrói estradas(...). As eleições são um compromisso dos nicaraguenses de votar pela paz, e não pela guerra.

Além de Ortega, apenas cinco candidatos pouco conhecidos de partidos considerados colaboracionistas participaram das eleições.

Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao lado de sua mulher e vice, Rosario Murillo, após votarem em Manágua Foto: CESAR PEREZ / AFP/7-11-21
Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao lado de sua mulher e vice, Rosario Murillo, após votarem em Manágua Foto: CESAR PEREZ / AFP/7-11-21

Sanções à vista

As principais democracias ocidentais e vários países latino-americanos trataram a reeleição de Ortega como uma farsa. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse que Washington está disposta a usar várias ferramentas, incluindo possíveis sanções, restrições de vistos e ações coordenadas com seus aliados contra aqueles que apóiam os "atos antidemocráticos" das autoridades nicaraguenses.

Em um comunicado antes do anúncio do resultado, o presidente americano, Joe Biden, afirmou que Ortega e sua mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, haviam orquestrado uma "pantomima de eleições que não foram livres nem justas". "Os Estados Unidos, em estreita coordenação com outros membros da comunidade internacional, usarão todas as ferramentas diplomáticas e econômicas ao nosso alcance para apoiar o povo da Nicarágua e exigir responsabilidades do governo Ortega-Murillo e de quem facilitar seus abusos", disse Biden na nota.

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Representantes democratas no Congresso pressionam para que Biden assine a chamada Lei Renascer, que visa intensificar a pressão sobre Ortega e buscar maior cooperação regional para impulsionar as instituições democráticas do país. Desde 2019, Ortega e parentes seus sofrem sanções americanas e europeias, que, pouco coordenadas, não surtiram grandes efeitos até aqui.

A Nicarágua, no entanto, enfrenta uma grave crise econômica, que, caso se acirre, pode impulsionar ondas migratórias rumo à fronteira americana com o México. Em vistas disso, as eventuais punições americanas provavelmente devem buscar equilibrar pressão com a minimização dos seus efeitos humanitários.

A União Européia (UE) rejeitou os resultados, dizendo que as eleições "completam a conversão da Nicarágua em um regime autocrático". Em um comunicado, os 27 membros da UE denunciam "prisões sistemáticas, assédio e intimidação" de oponentes, bem como de jornalistas e ativistas. O ministro das Relações Exteriores da Espanha, José Manuel Albares, qualificou as eleições de "zombaria" e rejeitou o resultado das urnas. O Reino Unido considerou que o presidente centro-americano está arrastando seu país pelo "trágico caminho do autoritarismo".

Na América Central, a Costa Rica disse no domingo que desconhecia o triunfo de Ortega e instou a comunidade internacional a promover o diálogo entre o governo e a oposição, enquanto a Guatemala e o Panamá lamentaram na segunda-feira as condições de realização do processo eleitoral.

Nesta segunda-feira, o governo do Peru, de esquerda, afirmou em nota que as eleições "não atendem aos critérios mínimos de eleições livres, justas e transparentes estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana, violam seu credibilidade, democracia e Estado de direito e merecem a rejeição da comunidade internacional".

O Chile denunciou que a votação "carecia de todas as condições para ser considerada válida e transparente" e o presidente colombiano, Iván Duque, pediu que o assunto fosse levado à ONU ou à OEA, que tem uma reunião marcada entre quarta e sexta-feira. Até o momento, o governo brasileiro não se manifestou.

Venezuela e Cuba, aliados da Nicarágua e comandados por regimes autoritários, apoiaram a votação. Em Moscou, o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, defendeu o processo eleitoral e condenou as críticas americanas ao governo.

Na noite de domingo, quatro ex-presidentes latino-americanos, incluindo o brasileiro Fernando Henrique Cardoso, divulgaram um comunicado propondo que governos da região ignorem os resultados das eleições e pedindo o isolamento do regime de Ortega. O documento foi assinado também por Laura Chinchilla, da Costa Rica, Juan Manuel Santos, da Colômbia, e Ricardo Lagos, do Chile. Eles consideram que o resultado não tem legitimidade e sugeriram suspensão de financiamentos de organismos internacionais ao governo de Manágua.

“Neste 7 de novembro se registrou na Nicarágua uma jornada eleitoral marcada pela violação dos direitos cidadãos de eleger de maneira livre e democrática suas autoridades. O ocorrido é grave tanto para o futuro do povo nicaraguense como para o resto da América Latina, mostrando rigorosamente o itinerário em que uma democracia se converte em autocracia”, disseram os ex-presidentes. “Esses comícios tiveram lugar em um contexto de forte repressão, com todos os espaços de oposição democráticos fechados, carente das garantias básicas de integridade eleitoral e sem a presença de observadores internacionais confiáveis. O resultado foi o esperado: a reeleição ilegítima de Daniel Ortega para um quarto mandato e sua intenção de perpetuar-se de maneira indefinida no poder”, afirma o comunicado.