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Leonardo Padura: 'O que está em jogo é a necessidade de liberdade', diz autor cubano sobre protestos em seu país

Romancista lança novo livro, 'Como poeira ao vento', marcado pelo tema do exílio, e afirma que, apesar das restrições na ilha, nunca pensou ‘seriamente’ em partir
O escritor cubano Leonardo Padura Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O escritor cubano Leonardo Padura Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Escritor contemporâneo de ficção mais importante de Cuba, vencedor em 2015 do prêmio Princesa de Astúrias de Literatura, o Nobel da língua espanhola, Leonardo Padura lança agora no Brasil “Como poeira ao vento” (Boitempo), romance calcado em experiência, direta ou indiretamente, vivida por grande parte de seus conterrâneos: o exílio. No livro, o escritor apresenta o Clã, grupo de amigos partidos pela geografia e pelo tempo, mas unidos por laços fortes de amizade e pela sensação de pertencimento a um país muito mais complexo do que fronteiras traçadas pelo maniqueísmo político.

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Indicado aos prêmios franceses Médicis e Femina, na categoria romance estrangeiro, “Como poeira ao vento” foi lançado no momento em que manifestações pela liberdade de expressão e contra a crise econômica eram duramente reprimidas pela ditadura cubana. O autor de “O homem que amava os cachorros” e criador do icônico detetive Mario Conde conversou com O GLOBO por vídeo da casa em que vive em Havana desde que nasceu, há 66 anos, quatro anos antes da Revolução Cubana. Padura fala da censura e do bloqueio econômico americano, da repercussão da declaração do ex-presidente Lula ao jornal espanhol El País sobre as tensões na ilha, de sua paixão por Rubem Fonseca e Chico Buarque, e ainda explica por que se debruça sobre o exílio sem jamais ter vivido fora de Cuba.

O senhor já havia tratado do drama do exílio em “O romance da minha vida”. Por que decidiu voltar ao tema?

O desenraizamento que está no centro do exílio é uma de minhas grandes obsessões. O livro de 2002 era centrado na figura histórica do poeta José María Heredia [que lutou pela independência cubana e viveu no exílio, nos EUA e México, até a morte] . Desta vez, calquei a narrativa a partir da amizade, refúgio fundamental para quem parte e para quem fica. Assim nasceu o Clã, grupo de amigos que experimenta o exílio, cada qual de uma maneira.

O senhor, no entanto, jamais deixou de viver em Cuba. Experimentou o exílio a partir da experiência de pessoas próximas?

Sim. Em 1968, era um típico adolescente cubano fã de beisebol e quem me levava aos jogos era meu tio, irmão mais velho de papai, que não tinha filhos homens. Eu, claro, o adorava. Pois ele foi tentar a vida em Nova York. Lembro bem da despedida, na casa de meus avós. Partir para os EUA, nos tempos da Guerra Fria, era um velório, jamais veríamos aquela pessoa novamente. Lembro do choro, da tristeza.

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E o senhor nunca mais o reencontrou?

Vinte e quatro anos depois, em 1992, fui pela primeira vez a Nova York e bati em sua porta, no Queens. O mais dramático para mim é que revivi, emocionado, os detalhes daquele dia [da partida para os EUA] , e ele, olhos arregalados, retrucou: “mas jura, Leonardo? Foi assim mesmo? Não lembro de nada” ( risos ). O tio criou uma couraça para se proteger da nostalgia. Ele era quase analfabeto, antes de imigrar pouco saiu do mesmo bairro em Havana, e para resistir a uma mudança tão grande, se apegou ao esquecimento.

O senhor considerou deixar Cuba?

Vou usar o plural pois essa seria uma decisão que teria de tomar com minha companheira de quatro décadas, Lucía. Jamais pensamos seriamente nesta possibilidade. Precisamos da cultura, dos cheiros, do ar cubanos. Aqui estão minhas histórias, meus personagens, minha linguagem. Por sorte, sempre pude praticar meu ofício, mesmo enfrentando a censura e a autocensura.

Quem parte também leva um pedaço do país, e essa ideia é importante para o livro, não?

Na minha família mesmo, há quem seguiu vivendo, fora de sua terra original, como se em Cuba ainda estivesse. E também quem tentou algo talvez ainda mais complexo: reinventar-se sem esquecer do passado. Todos estão representados em “Como poeira ao vento”.

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Como está vendo a repressão oficial aos protestos por liberdade de expressão e contra a ditadura em seu país?

O que também está em jogo é o direito, a necessidade de liberdade de manifestação política. A censura de qualquer opinião divergente [da do governo] é uma prática antiga aqui e aconteceu anteriormente, por exemplo, com a marginalização de religiosos e gays. Não quero me vitimar, mas se não contasse com editores fora de Cuba, uma parte de meu trabalho, por exemplo, não seria publicada ou sequer escrita.

Em entrevista ao El País na semana passada o ex-presidente Lula foi questionado sobre a situação política em Cuba. E se ele considerava ser possível, ao mesmo tempo, condenar o bloqueio americano que dificultou, por exemplo, a aquisição de seringas para as vacinas contra a Covid-19, e se pedir, nas ruas, liberdade aos opositores do governo. Qual a sua opinião?

A de que não só é possível, como é o correto. Uma posição não nega a outra. O bloqueio norte-americano já dura 60 anos e os EUA mantêm uma política muito agressiva contra Cuba. Mas também é correto afirmar que Havana precisa oferecer liberdade de expressão e de pensamento para as pessoas. Impedir a circulação de opiniões que não sejam as suas é um sinal de fraqueza, mais do que de força.

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Alguns resenhistas destacaram o fato de Barack Obama aparecer em seu novo livro, mas não os Castro. Foi de caso pensado?

Foi. Fidel e Raúl são tão presentes aqui que são onipresentes. Não precisava mencioná-los.

A Cuba dos Castro, ela também, pode um dia desaparecer “como poeira ao vento”?

Só o futuro dirá. Há, fora daqui, a percepção de que a sociedade cubana parou no tempo, pois o sistema político e econômico segue sendo o mesmo, mas isso não poderia ser mais equivocado. Ela mudou, e muito, especialmente nos últimos 20 anos, com a revolução tecnológica da informação. E continuaremos mudando. A água sempre passará por cima das pedras, o processo evolutivo é inevitável e Cuba não é exceção.

O senhor tem muitos leitores cativos no Brasil. Lê o que é produzido aqui?

Muito menos do que gostaria. Releio sempre que posso Rubem Fonseca, que teve importância central para mim. Ele foi modelo para esta literatura aparentemente policial, mas que também é social e exercício literário. O que escrevemos não tem por objetivo resolver um mistério, mas sim revelar uma realidade específica. Também adoro a Patrícia Melo e o Chico Buarque. Li tudo dele que chegou em minhas mãos e não vejo a hora de ler os novos contos dele.