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João Cabral de Melo Neto surge entre rigor e emoção em biografia mais completa

Ivan Marques capta os conflitos internos e as guinadas políticas de um dos maiores poetas brasileiros

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São Paulo

O rigor da construção poética de João Cabral de Melo Neto já se adianta em seu nome. Nascido na família Cabral de Mello em 1920, o poeta logo encasquetou que o sobrenome de cinco letras, o único ímpar, destoava do resto do conjunto. Resolveu simplificar.

"João Cabral de Melo Neto" se tornou, assim, um verso octossílabo minuciosamente equilibrado. Só tem palavras de quatro letras. A exceção é o "Cabral", que soma exatamente o dobro se unido à preposição "de". Nada fora do lugar.

Esta é uma das primeiras histórias contidas na biografia do autor escrita por Ivan Marques, professor de literatura da Universidade de São Paulo, que coroa uma série de lançamentos que celebram o centenário do poeta, após a fotobiografia organizada por Eucanaã Ferraz e Valéria Lamego e o livro de ensaios "João Cabral de Ponta a Ponta", de Antônio Carlos Secchin.

Com mais de 500 páginas, o volume sai encorpado pela mais ambiciosa reunião de documentos e correspondências do poeta até aqui, construindo uma narrativa que permite entrever como algumas "mudanças importantes na dicção poética de Cabral foram motivadas por experiências vividas por ele", como afirma Marques.

Talvez a inflexão mais chamativa tenha sido a guinada do pernambucano rumo a uma poesia mais envolvida com questões sociais, na época em que se aproximou do marxismo e de um grupo de artistas catalães durante sua temporada em Barcelona.

"Antes Cabral se ligava a um grupo político de direita, com uma poesia espiritualista sem nenhuma preocupação com a realidade brasileira", diz o biógrafo. "Já no Rio, ele convive com Drummond quando ele escreve ‘A Rosa do Povo’ e se entusiasma com a perspectiva de ser um poeta participante. Em contato com os espanhóis, não é só um tipo de ritmo ou de vocabulário que ele gosta, mas sobretudo o realismo, a concreção daquela poesia."

É pouco depois disso que ele escreve dois de seus livros mais conhecidos, "O Cão sem Plumas" e "Morte e Vida Severina", um contraste palpável com obras anteriores como "Uma Faca Só Lâmina" e "Psicologia da Composição". O próprio poeta diferenciava sua poesia entre a que devia ser "lida em silêncio" e a mais comunicativa.

Essas obras de maior engajamento político ampliaram uma popularidade antes restrita a círculos literários. "Morte e Vida Severina", originalmente encomendado e enjeitado pela dramaturga Maria Clara Machado como um texto teatral, teve tamanha consagração que acabou desprezado por seu próprio autor.

"Cabral passou a vida falando mal de ‘Morte e Vida Severina’ porque não queria ser conhecido só por esse texto", afirma Marques. "A popularidade era algo muito sonhado por ele, mas essa obra explodiu num momento em que ele queria ficar recluso."

Nisso pesaram alguns fatores, como a perseguição que o poeta e diplomata havia sofrido no Itamaraty após ser acusado de trabalhar para o comunismo soviético —uma fábula, segundo o biógrafo. Foi exonerado e readmitido quatro anos depois, quando as acusações foram derrubadas.

Também é decisiva a timidez paralisante de Cabral. Ao assistir a todas as 12 apresentações teatrais de "Morte e Vida Severina" durante uma temporada em Portugal, ele jamais atendeu quando a plateia clamava em profusão para que o autor do texto subisse ao palco.

Mas a história traz um dos episódios mais catárticos do livro —e da história das artes cênicas brasileiras. O texto cabralino, musicado por Chico Buarque e levado à cena a partir do fatídico ano de 1964, trouxe o primeiro grande prêmio internacional de uma montagem brasileira, segundo conta a biografia.

Na primeira vez em que viu a peça, na França, Cabral estava casmurro e pessimista. Ela já havia sido um sucesso nos palcos brasileiros, inflamados pelo fervor da oposição estudantil à recém-instaurada ditadura militar, mas isso não afetou a insegurança do autor com aquele projeto.

Surpreendido pela ovação ao final da performance, João Cabral foi afundando, vermelho, na cadeira. "No final, levantou o assento da poltrona, sentou-se no chão e chorou. A consagração em Nancy foi uma das maiores alegrias de sua vida."

O equilíbrio entre popularidade e prestígio nunca foi pacífico no caso desse poeta de trajetória singular no século 20. Apesar de suas proximidades cronológicas e temáticas com a literatura regionalista, a Geração de 45 e o concretismo, ele sempre frisou suas radicais diferenças com cada um deles.

Bebeu de influências tão díspares quanto os textos arcaicos da literatura espanhola e a arquitetura de Le Corbusier, que o cativou na juventude com a ideia de construir uma "máquina de emocionar" —fascinante para um poeta para quem a justeza e a precisão foram valores inegociáveis.

O que nos leva a um probleminha. Por causa de variáveis complicadas como a pandemia, o livro que marca o centenário do poeta vem ao mundo em 2021, quando ele completa a inexata marca de 101 anos. Nada grave —mas, para Cabral, sem dúvida uma perturbação.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: UMA BIOGRAFIA

  • Preço R$ 109,90 (560 págs.); R$ 59,90 (ebook)
  • Autoria Ivan Marques
  • Editora Todavia
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