Por Jessica Klein, BBC


Ian Jenkins, de 45 anos, enfrentou ameaças de morte depois de se declarar homossexual quando estava na universidade no Estado da Virgínia, nos Estados Unidos.

Na época, ele mal conseguia imaginar que um dia poderia viver com um parceiro sendo assumidamente gay — que dirá com dois.

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"O poliamor não é cair na gandaia, é um compromisso", diz Fabrício Carpinejar

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Mas hoje ele divide a casa em San Diego com seus dois companheiros, Alan, de 43 anos, e Jeremy, de 37 (que preferem usar apenas seus primeiros nomes por questão de privacidade) e seus dois filhos, que estão com 3 e 1 ano.

Todos os três são legalmente pais das crianças, seus nomes constam nas duas certidões de nascimento.

Jenkins e seu primeiro parceiro, Alan, ambos médicos, haviam discutido a possibilidade de um relacionamento mais aberto durante anos, antes de conhecer Jeremy em 2012.

Embora Jeremy, um tratador de zoológico que trabalha para salvar espécies ameaçadas de extinção, não se interessasse inicialmente por poliamor, ele conheceu o casal como amigo e "todos ficaram à vontade com a ideia — simplesmente rolou uma química boa", diz Jenkins.

Eles formaram uma família, mas quando tomaram a decisão de ter filhos, apareceram os obstáculos.

Além do fato de que cada um tinha que ter seu próprio advogado envolvido nos contratos de barriga de aluguel e de doação de óvulos para gerar o primeiro filho (uma mulher serviu de barriga de aluguel, e outra doou os óvulos), eles ainda tinham que convencer o juiz de que todos os três deveriam ser legalmente reconhecidos como pais da criança.

Jenkins conta que a juíza que recebeu o caso "entendeu a situação e queria nos ajudar", mas como era de primeira instância " não tinha permissão para abrir precedentes".

Até então, homens em relacionamentos a três jamais haviam obtido direitos conjuntos de paternidade de uma criança na Califórnia, ou possivelmente em qualquer lugar dos Estados Unidos.

Mas os três defenderam sua posição, cada um explicando "por que era tão importante e necessário que tivéssemos [nossos nomes] na certidão de nascimento", relembra Jenkins.

A justiça acabou concedendo aos três os direitos parentais em relação ao primeiro filho, nascido em 2017, e Jenkins acabou escrevendo um livro sobre a jornada deles chamado Three Dads and a Baby: Adventures in Modern Parenting, publicado em 9 de março nos Estados Unidos.

Embora ainda seja raro para pessoas em relacionamentos poliamorosos compartilharem legalmente a paternidade dos filhos, várias formas de 'relações éticas não-monogâmicas' — que envolvem mais de dois adultos de forma consensual — têm se tornado cada vez mais comuns na última década.

Diversos fatores contribuem para isso, desde o surgimento de aplicativos de relacionamento para múltiplos parceiros até a maior representatividade na mídia e nas redes sociais, além do acesso mais fácil para os interessados ​​nesse estilo de vida.

"Acho que um fator importante é a vontade das pessoas de serem abertas (a essa possibilidade)", diz Jenkins. "Precisa haver visibilidade."

Essas mudanças culturais, no entanto, remetem aos defensores do amor livre na década de 1960, que trabalharam duro para ampliar nossas fronteiras sexuais ao redor do mundo.

E as mudanças continuam a acontecer por causa de pessoas como Jenkins e seus companheiros, cujas histórias ajudam a quebrar tabus de longa data sobre ter múltiplos parceiros.

'Não é algo novo': a história da não-monogamia

Em 2016, uma pesquisa feita com quase 9 mil adultos solteiros nos Estados Unidos mostrou que um em cada cinco já havia tido um relacionamento consensualmente não-monogâmico.

Um estudo canadense apresentou basicamente os mesmos números um ano depois.

"Outra coisa que vimos na última década é que as buscas no Google pelos termos 'poliamor' e 'relações abertas' aumentaram, o que demonstra que há mais interesse neste tópico", diz Justin Lehmiller, psicólogo social e pesquisador do Instituto Kinsey para Pesquisa em Sexo, Gênero e Reprodução da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.

Mas as pessoas têm se envolvido nesse tipo de relacionamento "há muito tempo", ele acrescenta. "Não é algo novo."

Era uma novidade em 1969, no entanto, quando Dossie Easton, coautora do livro The Ethical Slut (1977) em parceria com Janet Hardy, tomou a decisão então "bastante incomum" de que "nunca seria monogâmica novamente" depois de ter saído de um relacionamento ruim.

Em 1973, ela se juntou a um grupo chamado San Francisco Sex Information (que ainda existe) e se viu em meio a uma comunidade de pessoas que exploravam estilos de vida sexuais abertos. "Eu precisava fazer parte do avanço desse mundo", diz ela.

Easton, agora com 77 anos, vinha falando sobre a não-monogamia ética há anos, até que ela e Hardy ministraram uma oficina de BDSM (sigla em inglês para submissão, dominação, sadismo e masoquismo) durante uma conferência em 1994 nos arredores de San Francisco.

Embora o público não tenha ficado escandalizado com o BDSM, ficou chocado que Easton e Hardy, que namoravam na época, tivessem apresentado a oficina bem na frente do parceiro masculino de Easton.

Isso levou a dupla a escrever o livro, que aborda como manter relacionamentos saudáveis ​​não-monogâmicos. Ainda é uma leitura um tanto obrigatória para pessoas interessadas nesse estilo de vida. "A cada ano, vende mais", diz Easton.

Nas últimas décadas, ela viajou para "encontros de poliamor" no Reino Unido, Alemanha, Holanda e Austrália. Em Berlim, conheceu Claudia Zinser, de 57 anos, que começou a "viver o poliamor abertamente há cerca de 25 anos", revela a própria.

Zinser aconselha pessoas em relacionamentos poliamorosos há uma década — e testemunhou a abertura em relação a esse estilo de vida crescer, sobretudo entre jovens urbanos.

"A mídia, incluindo as redes sociais, promoveu o assunto... então não é mais algo desconhecido ou tabu", diz ela. "Talvez até esteja na moda."

O 'empurrão' dos aplicativos

Os relacionamentos éticos não-monogâmicos não tiveram uma trajetória puramente ascendente.

Lehmiller lembra que a epidemia de HIV, vírus causador da Aids, das décadas de 1980 e 1990 fez com que as pesquisas sobre não-monogamia consensual diminuíssem, uma vez que fazer sexo com vários parceiros passou a ser visto como menos seguro.

"O renascimento da pesquisa nessa área começou por volta de 2010", explica Lehmiller. "Na última década, realmente vimos uma explosão."

A atual quase inclusão da não-monogamia ética, diz ele, aconteceu tanto por causa da pesquisa acadêmica que chegou até o público, por meio de centros de educação e mídia, quanto pela representação dessas relações na TV.

As representações mais recentes vão além da série Amor Imenso, da HBO, ou Sister Wives, do TLC, que mostram famílias mórmons com um marido e várias esposas, para retratar a diversidade de relações múltiplas existentes.

Unicornland, de Lucy Gillespie, em que uma mulher que acaba de ficar solteira sai com vários casais diferentes; e You Me Her, em que um casal se apaixona junto por outra mulher, são exemplos fortes.

"A internet e os aplicativos de relacionamento mais inclusivos também desempenharam um papel nessa mudança de atitude", afirma Lehmiller.

Vários aplicativos voltados para a não-monogamia tornam mais fácil encontrar outras pessoas que buscam relacionamentos com vários parceiros ou experiências sexuais.

No Feeld, um aplicativo voltado para relacionamentos múltiplos, 60% dos casais estão à procura de uma terceira pessoa, diz um porta-voz da empresa.

E não é apenas sexo que eles buscam. Uma pesquisa que ouviu 640 usuários dos EUA e do Reino Unido do aplicativo 3Fun, voltado para aventuras a três, mostrou que cerca de 43% das pessoas que procuram sexo a três também buscam relacionamentos a três.

Com esses aplicativos, "há mais opções para se conhecer e se conectar", afirma Lehmiller, "não é mais tanto uma cena underground como era no passado".

Foi por meio do Feeld que Janie Frank, de 25 anos, conheceu seus dois parceiros, Maggie Odell, de 27, e Cody Coppola, de 31, em 2016.

Ela começou a usar o aplicativo no início daquele ano porque, embora só tivesse saído com homens anteriormente, tinha percebido que também gostava de mulheres.

"Eu estava muito nervosa em relação a namorar uma mulher pela primeira vez", conta Frank.

"Decidi que a maneira que eu iria contornar isso seria namorando casais, para ir me acostumando, então eu sairia com um homem e uma mulher ao mesmo tempo."

Olhando para trás, Frank acha essa lógica "estranha e engraçada", mas fez com que ela saísse com vários casais antes de conhecer Odell e Coppola. "E (me apresentou a) todo esse estilo de vida que eu não sabia que existia", diz ela

"Conversando com as pessoas no aplicativo... comecei a perceber que existe toda uma comunidade de pessoas que são eticamente não-monogâmicas."

Hoje, Frank e Odell têm perfis no TikTok com algumas centenas de milhares de seguidores. "Nós usamos para tentar falar sobre poliamor, conscientizar as pessoas sobre isso, para normalizar e educar as pessoas sobre... como pode ser", explica Frank.

Algumas pessoas eticamente não-monogâmicas entram em contato com elas para agradecer pela representatividade.

Outras, menos familiarizadas com o estilo de vida, comentam que estão contentes por aprender sobre poliamor com os vídeos que elas postam.

"Nunca tinha ouvido falar disso antes", escrevem algumas.

A lei está sendo atualizada?

O aumento de relacionamentos éticos não-monogâmicos está levando ao reconhecimento jurídico — além do reconhecimento à paternidade obtido por Jenkins e seus companheiros.

Em julho de 2020, o conselho municipal de Somerville, no Estado americano de Massachusetts, votou unanimemente pelo reconhecimento de parcerias domésticas poliamorosas. A cidade de Cambridge, que faz fronteira com Somerville, fez o mesmo recentemente.

E isso não está acontecendo apenas nos Estados Unidos. Em 2018, dois homens e uma mulher em um relacionamento poliamoroso foram reconhecidos legalmente como pais do filho em Newfoundland, no Canadá.

No ano anterior, três homens em um relacionamento em Medellín, na Colômbia, se casaram legalmente.

Esses movimentos geograficamente dispersos em direção à normalização da não-monogamia ética podem ajudar a desencadear um movimento mais global.

Zinser, em Berlim, acredita que o estímulo a encontros e comunidades online, provocado pela pandemia de Covid-19, vai reforçar as "redes globais" para aqueles que praticam a não-monogamia ética.

A disseminação de informações sobre a não-monogamia, por sua vez, "dará às pessoas mais opções para criar o tipo de relacionamento certo para elas", avalia Lehmiller.

Mas, apesar dessas mudanças, as pessoas em relacionamentos não-monogâmicos e queer ainda lutam contra o estigma.

Frank diz que ela e seus parceiros já receberam uma correspondência anônima de ódio. E, há um ano, Jenkins conta que os alunos da faculdade que frequentou ainda entoavam um canto homofóbico em partidas de futebol.

Em San Diego, no entanto, Jenkins afirma que ele e seus companheiros não enfrentam discriminação — foi principalmente por isso que ele e Alan decidiram se mudar para lá.

Depois que o livro de Jenkins foi lançado, os colegas do hospital em que ele trabalha, incluindo todos os administradores mais velhos, escreveram para parabeniza-lo.

"Eles até sugeriram que poderíamos fazer uma sessão de autógrafos no futuro", diz Jenkins. "Temos muita sorte de estar nesse ambiente."

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