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Economia Macroeconomia

Bolsonaro será 1º presidente desde o Plano Real a terminar mandato com salário mínimo valendo menos

Consultoria calcula que, descontada a inflação, a perda do poder de compra ao fim do governo será de 1,7%
Fila de emprego: cerca de 64% das aposentadorias e pensões no país pagam apenas um salário mínimo
Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Fila de emprego: cerca de 64% das aposentadorias e pensões no país pagam apenas um salário mínimo Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

RIO - Jair Bolsonaro vai terminar seu mandato em dezembro de 2022 como o primeiro presidente, desde o Plano Real, a deixar o salário mínimo valendo menos do que quando entrou. Nenhum governante neste período, seja no primeiro ou segundo mandato, entregou um mínimo que tivesse perdido poder de compra.

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Pelos cálculos da Tullett Prebon Brasil, a perda será de 1,7%. Isso, se a inflação não acelerar mais do que o previsto pelo mercado no Boletim Focus, do Banco Central, base das projeções da corretora. As previsões vêm sendo revisadas para cima há 16 semanas. O piso salarial cairá de R$ 1.213,84 para R$ 1.193,37 entre dezembro de 2018 e dezembro de 2022, descontada a inflação.

O salário mínimo está na Constituição brasileira, que o protege de perdas do poder de compra, sendo obrigatória a recomposição da inflação.

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“Da ótica das contas fiscais da União, a perda retratada em nossa simulação para o mínimo estende-se, em realidade, a todos os benefícios e pagamentos corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) — toda a folha da previdência, abono, Loas (Benefício de Prestação Continuada para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda)”, diz relatório da corretora.

Dois fatores explicam a perda inédita. Um deles é o ajuste fiscal, pelo peso do salário mínimo na indexação do Orçamento da União, ou seja, reajustes no piso têm impacto em uma gama de outras despesas, como benefícios sociais e gastos com Previdência. O segundo é a aceleração da inflação .

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Como os índices de preços estão ficando mais altos de um ano para o outro, a reposição da inflação passada que o governo vem promovendo não garante a preservação total do poder de compra do salário mínimo.

Há três anos, não há reajuste do piso acima da inflação. O último foi em 2019, quando ainda prevalecia a regra de correção, que considerava a inflação mais a variação do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos antes.

Auxílio Brasil maior

Cerca de 64% das aposentadorias e pensões no Brasil são de um salário mínimo. Pelos cálculos de Lucas Assis, economista da Tendências Consultoria, 2021 foi o primeiro ano desde 2000 que a massa total de salários pagos pela Previdência teve queda. A perda chegou a 2,5%, descontando a inflação:

— Não estamos prevendo reajuste real do mínimo até 2026. Não vemos espaço para aumento como aconteceu nas últimas décadas. O mínimo indexa o piso previdenciário. Mas, para as famílias das classes D e E, o mínimo é muito relevante na massa de renda.



Assis lembra, porém, que o Auxílio Brasil vai compensar parte da perda para essa parcela da população. A transferência dobrou para R$ 400 e foram incluídas 3 milhões de famílias no programa.

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A aposentada Carmen Finamor voltou a trabalhar para compor a renda. Auxilia nos processos administrativos de uma loja de imóveis.

— Está tudo bem difícil, as coisas no supermercado estão caríssimas. Antes, eu ainda conseguia dar atenção para minha saúde, ter um momento de lazer e uma alimentação melhor. Agora, não consigo nada disso, até o básico tem se tornado uma luta diária.

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Morando com o filho, que trabalha como microempreendedor individual e o afilhado, que é estagiário, o medo de um dos três perder o emprego é grande, diz Carmen.

Com a crise no mercado de trabalho, o país tem hoje a maior parcela de trabalhadores ganhando até um salário mínimo desde 2012, início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE. Eram 35,3% dos ocupados, o que representava 33,8 milhões em dezembro de 2021.

— A crise que aconteceu no mercado de trabalho em 2020, 2021 levou os trabalhadores a aceitarem posições muito piores do que tinham antes da pandemia. E a inflação está maior em alimentos, conta de luz, transporte, combustíveis, itens essenciais para o cidadão —afirma Bruno Imaizumi, economista da LCA Consultores, que fez a divisão por ganho salarial.

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O operador de estacionamento Bruno Santiago conseguiu emprego formal, mas vê o salário de R$ 1.250 indo só para itens básicos:

— Tive que diminuir o consumo de vários alimentos, principalmente carne vermelha. Acho um absurdo ter que cortar coisas até da alimentação. Fora a conta de energia.

Ele diz que sempre ganhou um salário mínimo, mas nunca a renda deu para tão pouco:

— Em 2019, eu ganhava até menos, mas dava para comprar mais coisas no mercado e ainda sobrava alguma coisa para me divertir. Hoje, tenho que escolher o que comprar.

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Imaizumi diz que dar reajuste real talvez tenha efeito inverso. Ele calcula que 21% das admissões formais foram com um salário mínimo:

— Quando ajusto o salário muito para cima, pode haver demissões. A oferta (de mão de obra) não está condizendo com a demanda.

Em março, a Pnad mostrou que há 11,9 milhões de desempregados no país .

Inflação mais alta

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a inflação foi mais severa para os que ganham menos. Em fevereiro, para as famílias de renda mais baixa (até R$ 1.808,70), a inflação acumulada em 12 meses era de 10,9%, para os de renda muito alta (maior que R$ 17.764,49), era de 9,7%.

Com isso, a renda das classes D e E está mais comprometida com itens essenciais: casa, alimentação, comunicação e saúde. São 78,6% para essas despesas, sobrando pouco espaço para consumo, segundo dados da Tendência.

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Pai de dois filhos e com a mulher desempregada, o auxiliar de cozinha Rodolfo Oliveira tem mais de um trabalho:

— Sem isso, fica quase impossível não deixar as contas atrasarem.

Ele ficou desempregado em 2021. Conseguiu vaga com carteira, mas a mulher, não. Ela ganha alguma renda extra como manicure:

— É muito ruim ver seu filho pedir algo e, às vezes, não ter dinheiro para pagar, não sobra nem para o lazer deles.

‘É rendimento que vai todo para consumo'

Professor emérito da UFRJ, o economista João Saboia, estudioso do mercado de trabalho há décadas, lamenta a falta de ganho real do mínimo e lembra que o rendimento vai todo para o consumo.

Qual o efeito da falta de correção real do mínimo?

É lamentável que não tenha reajuste real há três anos e, por causa da inflação, o mínimo está tendendo a uma queda este ano. O salário mínimo é importantíssimo: reduziu a pobreza, contribuiu para a melhora da distribuição da renda até meados da década passada. E, para a economia, é rendimento que vai todo para consumo. É pena que a forma institucional de garantir ganho para as rendas mais baixas tenha sido interrompida.

Mas há o efeito nas contas públicas...

O governo se preocupa mais com efeito nas contas públicas, por levantar o piso da Previdência, mas ele é importante para quem tem contrato formal. Há uma parcela significativa ganhando exatamente um mínimo. Nos centros urbanos mais desenvolvidos tem peso menor, mas nas regiões mais pobres é relevante. Foi uma política de valorização que começou no governo Fernando Henrique Cardoso e continuou nos governos seguintes.

(*Estagiária sob supervisão de Cássia Almeida)