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‘Há uma busca por uma mudança de regime na Rússia, mesmo não declarada’, diz analista de Defesa da Rand Corporation

Ocidente não parece disposto a se contentar com nada menos do que saída de Putin, ainda que não o afirme. Isto gera um equilíbrio delicado, e líder russo pode aumentar a violência como resposta, diz Michael Mazarr em entrevista ao GLOBO
Fumaça do lado de fora da cidade Vasylkiv, nos arredores de Kiev, após um ataque russo a um depósito de petróleo no último domingo Foto: DIMITAR DILKOFF / AFP 27-2-22
Fumaça do lado de fora da cidade Vasylkiv, nos arredores de Kiev, após um ataque russo a um depósito de petróleo no último domingo Foto: DIMITAR DILKOFF / AFP 27-2-22

Depois das potências ocidentais baixarem sanções contra a Rússia antes reservadas a países como o Irã e Coreia do Norte, muitos no Ocidente começaram a dizer que a política dos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em relação a Moscou se torna na prática, cada vez mais, uma política que defende uma mudança de regime: isto é, a queda de Vladimir Putin. Embora o Ocidente mantenha a posição oficial de que este não é o objetivo, a política de pressão máxima gera uma situação delicada, na qual um acordo negociado é muito difícil.

Nesta entrevista, Michael Mazarr, cientista político sênior da área de Defesa da Rand Corporation, ligada ao Departamento de Defesa e considerada parte constitutiva da elite militar americana, faz uma avaliação dos riscos do presente momento. Mazarr prevê que, acuado, Putin deve reagir com a intensificação de sua ofensiva militar rumo a uma vitória, com o emprego de métodos cada vez mais brutais. Embora considere a crise atual sem precedentes, Mazarr considera remota a chance de um ataque nuclear por ora, e não vê o fim da guerra no horizonte.

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Sem perceber, estamos caminhando para uma política de mudança de regime das potências ocidentais em relação à Rússia?

Não como política oficial. Comentários de porta-vozes do governo americano nos últimos dias deixaram isso claro, ao afirmarem com clareza que não estamos exigindo o poder de Vladimir Putin. Então, do ponto de vista oficial, não há uma política formal de mudança de regime. e acho isso muito bom e importante, porque assumir esse tipo de posição seria acirrar muito a pressão e acarretaria em muitos riscos.

Mas em termos de política de fato, para além da postura oficial?

É preciso analisar a realidade objetiva. As ações russas criaram uma situação onde não há agora uma saída real além de alguma forma de mudança no governo em Moscou. Se, por exemplo, você sabe que Putin não vai recuar de sua aparente intenção de controlar partes significativas da Ucrânia, senão toda a Ucrânia, não vejo espaço para nenhum tipo de acordo negociado para essa guerra. E, nesse caso, com todas as sanções que foram postas em prática, não apenas os Estados Unidos, mas também outros países têm efetivamente uma demanda de fato por uma mudança na liderança política russa.

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Qual situação esta contradição produz?

Há um equilíbrio muito desafiador e instável entre a posição oficial dos EUA, que eu acho que é muito apropriadamente limitada, e a realidade implícita das demandas que estamos fazendo. Isso cria uma busca mundial de fato uma por mudança de regime, mesmo que não seja explicitamente declarada. Essa é a tensão que nós e a estratégia aliada temos que gerenciar neste momento.

Quais são os riscos dessa tensão?

Recentemente, publicamos um relatório sobre como manter a rivalidade entre as grandes potências estável. Analisei muitos estudos de caso históricos e outros materiais. Uma das grandes descobertas foi a de que nada desestabiliza mais severamente uma relação entre grandes potências em competição e gera mais riscos de guerra do que uma situação na qual um ou ambos os lados acredita ter a legitimidade básica de seu regime rejeitada, com a ameaça de uma mudança existencial fundamental em seu país. O risco aqui se dá porque, segundo a maioria dos especialistas em Rússia, Putin percebeu tal intenção do Ocidente por um longo tempo, no mínimo, desde cerca de 2007, talvez antes, até 2014 e a Revolução do Euromaidan. Ele relacionou as chamadas revoluções coloridas na Europa Oriental a uma intenção americana de levar esse processo para Moscou, que nunca existiu, penso, de maneira formal, e gerar algum tipo de levante revolucionário na Rússia que o derrubaria. Não tenho motivos para acreditar que os Estados Unidos já tiveram essa política, mas Putin, por muitos relatos, se convenceu de que sim. Então, mesmo quando o governo dos EUA diz oficialmente que essa não é nossa intenção, Putin não acredita, e busca evidências para essa suspeita. Ele vai olhar para a guerra econômica como indício de que tentam derrubá-lo.

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Quão séria é a ameaça de um acirramento que leve a um possível ataque nuclear?

No momento, não considero este um risco tão iminente, em parte porque a Rússia tem muitos passos para acirrar as tensões antes de chegar perto de usar armas nucleares. Segundo todas as informações, ainda não usou ataques aéreos táticos nem ciberataques, na Ucrânia e tampouco no Ocidente. Ele pode apenas aumentar seus esforços militares e lançar mais tropas na batalha, e levar métodos mais brutais. Portanto, há muitos passos a serem dados. Mesmo se Putin decidir que quer tornar as coisas mais desconfortáveis diretamente para os Estados Unidos, pode fazer isso por meios cibernéticos, como, por exemplo, criando interceptações aéreas perigosas sobre a Europa. Há uma monte de coisas a usar antes de se recorrer às armas nucleares. Então, no momento, não estou preocupado com isso. Preocupa-me que, no contexto dessa discussão sobre mudança de regime, se Putin passar a acreditar que a situação se torna uma ameaça real ao seu regime, ele começará a atacar de outras maneiras além da guerra nuclear. Isso então pode desencadear um conflito maior com a Otan, que tem risco de escalada nuclear. Então, são vários passos adiante.

Soldado russo chorou ao ver a mãe durante a chama de vídeo. Uma das ucranianas, no fim da ligação, diz para a mãe do rapaz no outro lado da linha: 'Natasha, Deus esteja com você. Ligaremos mais tarde. Ele está vivo e saudável'
Soldado russo chorou ao ver a mãe durante a chama de vídeo. Uma das ucranianas, no fim da ligação, diz para a mãe do rapaz no outro lado da linha: 'Natasha, Deus esteja com você. Ligaremos mais tarde. Ele está vivo e saudável'

Em termos históricos, como avalia os riscos da atual situação? Temos experiência com este tipo de cenário atual?

A situação geral apresenta riscos intensos maiores do que qualquer crise semelhante na Guerra Fria, exceto a Crise dos Mísseis em Cuba, em 1962. Um problema é que as equipes atuais nos Estados Unidos, na Rússia e em outros governos não têm experiência nesse tipo de situação. Mas podemos procurar historicamente por lições em várias crises da Guerra Fria. Além da crise dos mísseis cubanos, alguns paralelos são eventos como a intervenção da União Soviética na Hungria, em 1956, ou a invasão da Tchecoslováquia em 1968, ou Afeganistão, em 1979. Mas essas situações eram muito diferentes por várias razões; a Guerra Fria, mesmo em 1956, já estava um pouco travada. Esses países não estavam na fronteira direta da Otan da mesma maneira, e não havia o risco de acirramento. A natureza da intervenção também era diferente, porque já havia governos comunistas alinhados aos soviéticos, que reafirmaram o seu poder. Agora os russos atuam para mudar o regime [na Ucrânia], e serão confrontados com um vácuo completo de ordem pública, como no Iraque. Então há muitas razões pelas quais nós, na era moderna, não temos muito a dizer sobre situações parecidas. A Crise dos Mísseis é provavelmente o caso mais próximo, mesmo que  seja muito diferente.

Algumas pessoas têm dito que deveria oferecer algum tipo de saída negociada a Putin. Como vê esta sugestão? E o que poderia ser?

Há um dilema, porque, por um lado, se você quiser resolver a guerra diretamente, sem um acirramento, é necessário buscar uma  saída que os dois lados possam aceitar. Neste caso, a Crise dos Mísseis é um exemplo decente, no qual sabemos que os Estados Unidos fizeram esta oferta, dizendo que, sem anunciar publicamente, iriam tirar os mísseis da Otan da Turquia. Isso forneceu, pelo menos teoricamente, uma saída interna para Nikita  Kruschev preservar sua imagem na União Soviética. Normalmente, mesmo quando se tenta deter alguém, você precisa oferecer algo, para que sintam que estão tendo seus interesses atendidos antes da guerra.

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E o que poderia ser oferecido?

Não acredito que o Ocidente possa ou deva aceitar algo que não seja uma retirada russa completa para no mínimo as linhas existentes há uma semana atrás. Em outras palavras, que entreguem todo o território que ganharam e deixem de atacar a Ucrânia. Além disso, há outras coisas. O presidente Zelensky já indicou um desejo de considerar opções de neutralidade de várias maneiras, neutralizando geopoliticamente a Ucrânia. Portanto, há várias fórmulas que você pode oferecer. Mas a lista de demandas de Putin antes da invasão era tão elaborada e extrema que ninguém poderia imaginar que seria atendida, e agora ele está comprometido a não se retirar sem no mínimo a ideia de que a Ucrânia pode estar disposta a pelo menos a suspender o pedido de adesão à Otan. Temos evidências de que os russos tinham propaganda pronta para carregar em seus sites governamentais que proclamava “reavimos a Ucrânia, ela é parte da Rússia novamente, e não será perdida”. Isso leva a acreditar que o objetivo seja reabsorver a Ucrânia. E agora que ele invadiu, o requisito mínimo é a retirada, o que parece improvável. Portanto, sim, devemos fazer ofertas, mas no momento não ouvi falar de nenhuma persuasiva capaz de chegar a um tipo de acordo.

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E a adesão à Otan?

Com base na declaração de Bucareste de 2008, a Ucrânia e a Geórgia foram colocadas no caminho para a adesão à Otan, certo? E esta é, na verdade, uma das questões que gera uma confusão sobre a mentalidade de Putin. Mas a maioria das pessoas nos Estados Unidos e na Otan acreditavam que a Ucrânia ainda estava a muitos anos de ter oferecida a adesão real à aliança, por uma variedade de razões, incluindo as próprias reformas internas de suas instituições militares. Portanto, não oferecemos a adesão à Otan nem tampouco havia perspectiva imediata de fazê-lo. Apenas os Estados Unidos e outros membros da Otan não estavam dispostos a contar à Rússia: ok, vamos rejeitar permanentemente a ideia da Ucrânia.

Há algo que possa ser feito para gerar uma diminuição das tensões de imediato?

Infelizmente, não vejo isto. Uma das prioridades mais importantes agora é evitar um acirramento maior. Então, nas próximas semanas, o mais importante é garantir que isso não se torne uma guerra mais ampla, e ambos os lados têm um incentivo para fazer isso. E, pelo menos até agora, os russos têm feito algumas ameaças retóricas, mas nada indica que realmente querem ameaçar uma guerra mais ampla. Então, a questão está dentro da Ucrânia. Eu honestamente não consigo ver outro futuro a curto prazo além de uma continuação brutal da guerra, com lento e gradual aumento do nível de controle russo do território, mas uma insurgência de guerrilha contínua e de fato acelerada contra sua presença.

A pergunta seguinte é o que acontece se passarmos para uma próxima fase, isto é, se a Rússia se aproximar de reivindicar algum nível de controle de certas partes do país; se reivindicar uma nova liderança, e reconhecê-la como o novo governo da Ucrânia, e afirmar ser a hora de um cessar-fogo, com a intenção de proteger vidas civis e acabar com a  guerra. É muito óbvio que os EUA não vão aceitar esse governo fantoche, mas as tensões e riscos podem diminuir um pouco nesse ponto. Isso se torna um desafio totalmente novo, um desafio indefinido para administrar o direito de apoiar os ucranianos em sua resistência, e a Rússia tentará tornar isso muito difícil. Então não, não vejo nada à frente, além da violência contínua e uma necessidade muito desafiadora de gerenciar uma crise.