Análise: A ficção de Lygia Fagundes Telles não tem essência, há que se aprender a conviver com ela

Aparentemente excessiva, a demanda concreta da autora se explica. Existe na sua ficção, como na filosofia de Albert Camus e na prosa de D. H. Lawrence, um cristianismo sem Deus

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Por Silviano Santiago
Atualização:

Causa espanto o sucesso das adaptações da obra literária de Lygia Fagundes Telles pelos meios de comunicação de massa. Tanto nos contos quanto nos romances, ela traz para a literatura contemporânea brasileira o sentido do texto escrito de acordo com as formas de espetáculo privilegiadas pelas classes populares. Herdeira confessa de Machado de Assis, para quem o espetáculo da ficção se passa no palco da corte, onde se agigantam as emoções do drama burguês ou a mímica abusiva da ópera, Lygia decide eleger, à semelhança de peão afeito às lides agropecuárias, a arena de rodeio para surpreender os personagens humanos que, frente à fatalidade das forças espelhadas na fauna e na flora selvagens, se manifestam por trejeitos de desordem interior e por palavras e atos de rebeldia. O peão se faz, no entanto, pastor para conduzir os rebeldes à mão caridosa do bem, que os tornará ordeiros, mansos e disciplinados. Revolta frente às intempéries desonrosas da vida é a condição do ser na comunidade. Disciplina alcançada pelas artes fidalgas do amor é o destino da criação no planeta.

Lygia Fagundes Telles em foto de 2009, à época em que teve livros reeditados pela Companhia das Letras Foto: Nilton Fukuda/Estadão

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Lembremos Clarice Lispector, sua contemporânea e amiga: "Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado". Em Lygia, a nostalgia de não ter nascido bicho tem como consequente "a inquietação" e "a raiva". Nesse alicerce dramático, a ficcionista ergue a rebeldia instintiva e a disciplina do amor como pilares da sua prosa. A rebeldia é a fome da nossa memória ancestral carente de verdade humana. Ela leva os humanos a competirem com a inclemência dos poderes infernais e divinos que modelam tudo e todos. Feita palavra, a rebeldia é motor da invenção ficcional. Recria artisticamente o mundo. É criação, no sentido absoluto do termo. "Lamber a cria, a gente dizia no mundo dos cachorros e gatos", gosta de lembrar quando é inquirida sobre a natureza do trabalho de arte. "Minha infância é inteira feita de cheiros", lê-se em As meninas (1973). Em Ciranda de pedra, Virgínia descobre: "Mais importante do que nascer é ressuscitar".

Se em última instância a revolta instiga e fomenta o caos na comunidade e no mundo, já a disciplina manifesta a soberania do amor no reajuste das relações entre a natureza e os homens, entre estes e ela e dos homens entre eles. Revolta e disciplina intercambiam seus papéis e seus valores em tramas ficcionais e se sucedem até na relação entre os vários contos dentro duma coleção. Porque simbólicas são definitivas as palavras que Lygia coloca à abertura do livro A Estrutura da Bolha de Sabão: "Fiz alterações nos textos, sou uma inconformada. As ficções desgarradas. Recolhidas e tosquiadas. O pastor junta o seu rebanho". O Evangelho, acrescento eu, nos ensinou que a ovelha desgarrada é a única a inspirar a compaixão do Senhor. Como escreveu Gregório de Matos: "não queirais, Pastor divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória".

Cara: revolta. Coroa: disciplina. Revolta ou disciplina? Revolta e disciplina. A ambivalência. Em depoimento, a romancista esclarece: "Quero que meu leitor seja parceiro-cúmplice nessa ambiguidade que é o ato criador. Ato que é desespero e apaziguamento. Ansiedade e celebração". Parodiando o poeta Murilo Mendes, digo que Lygia segura com sobrenatural elegância o fio que conduz da arena de rodeio ao Gólgota. Sem parodiá-lo, cito novamente Murilo: "Um ouvido resistente poderia perceber / o choque do tempo contra o altar da eternidade".

A ficção de Lygia Fagundes Telles não tem essência, a ser procurada pelo leitor. Há que se aprender a conviver com ela, como se convive com um gato, por exemplo. "O gato Astronauta me dava", lemos em As Meninas, "aulas diárias de preguiça e luxúria. Todo feito de delicadezas perigosas, o meu gato. Ou Demônio?" Assim o livro de Lygia e seu leitor. Em conferência em Paris, na Sorbonne, confidencia: "Não espero ser compreendida, espero ser lida. Se possível, amada - confessei a um leitor que parecia preocupado, gostava dos meus livros, mas muita coisa não conseguia compreender".

Aparentemente excessiva, a demanda concreta da autora se explica. Existe na sua ficção, como na filosofia de Albert Camus e na prosa de D. H. Lawrence, um cristianismo sem Deus. Vale dizer: a alma reside na carne, o espírito no sangue. Em depoimento, afirma: "Levanto a pele das personagens que é a pele das palavras, quero o mais íntimo, o mais secreto, e nessa busca me encontro". A escritora se encontra na pele que recobre a carne secreta da palavra ficcional e também a do personagem. Ela conhece o quilate do vocábulo e da cria e os reconhece como autênticos pelo que eles têm de pele que pulsa ao ritmo do coração. Todas as sensações e paixões dos seres viventes estão a nu e a descoberto na letra do livro. Estão à flor da pele.

Na prosa de Lygia, a sensualidade felina programa a criação de inúmeros e inesquecíveis personagens, de que a ficcionista, é inventariante incorruptível e zelosa colecionadora. Lembremos uma vez mais de Murilo Mendes. De versos do poema "Ofício humano": "As harpas da manhã vibram suaves e róseas. / O poeta abre seu arquivo - o mundo ?, / Vai retirando dele alegria e sofrimento / Para que todas as coisas passando pelo seu coração / Sejam reajustadas na unidade".

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