Hollywood dentro do armário

Censura imposta sobre grandes estúdios mudou o cinema — e afetou a representatividade LGBTQIA+ nas telas

Caio Delcolli Colaborador

Marlene Dietrich, vestindo terno, gravata borboleta e cartola, beija outra mulher na boca em um cabaré. Para você, esta cena de Marrocos pode não soar escandalosa, mas com certeza foi em 1930, quando o longa-metragem dirigido por Josef von Sternberg chegou aos cinemas.

O icônico momento com a atriz não foi o único daquela época com o potencial de deixar de cabelos em pé a parcela conservadora da sociedade americana.

Em O Marido da Guerreira, os papéis sociais de gênero são invertidos: as mulheres são o “sexo forte” e os homens, o frágil. A Rainha Christina trazia Greta Garbo aparentemente tendo casos com um conde e uma condessa. Ela os abandona e viaja usando roupas masculinas.

Inimigo Público e Scarface: A Vergonha de uma Nação traziam jovens gângsteres matando uns aos outros, abusando de mulheres e intimidando donos de comércios. Em A Vênus Loura, Dietrich vive uma personagem que se prostitui para cobrir as contas médicas do esposo, inclusive levando o filho junto a encontros. As seduções em série de Barbara Stanwyck em Serpente de Luxo eram motivo de assobios e risos das plateias.

No ano em que Marrocos estreou, 60% da população americana, isto é, 80 milhões de pessoas, frequentavam salas de cinema ao menos uma vez por semana, segundo estudo da Universidade Elon, dos Estados Unidos.

A Grande Depressão causada pela queda da bolsa de valores de Nova York, em 1929, fez os índices caírem drasticamente na década de 1930. Entre os anos de 1934 e 1936, o número de espectadores despencou em 25%. Para atrair público, Hollywood começou a caprichar em sexo, violência e consumo de drogas.

O povo americano foi pego pelo medo. A Grande Depressão ameaçava tombar instituições, agências e a economia toda. As pessoas estavam aterrorizadas e não estavam pensando claramente”, explica Mark A. Vieira, autor do livro Forbidden Hollywood: The Pre-Code Era (1930-1934): When Sin Ruled the Movies (Running Press, 2019), em entrevista ao Omelete. “Os estúdios de cinema corriam o perigo de perder autonomia, então, desesperados, agarraram-se às fórmulas que levariam as pessoas de volta aos cinemas”.

A Igreja Católica não estava gostando nada disso. Ela já via o cinema como uma forma de entretenimento de massa e uma força cultural e tanto. A instituição se preocupava com a influência de Hollywood no comportamento do público e com o modus operandi capitalista que regia os grandes estúdios, acreditando que a moralidade cristã estava em risco. Em uma encíclica promulgada naquela década, a Igreja dizia que o cinema devia servir para o “aperfeiçoamento do homem”, e não para a “destruição” e a “ruínas das almas”.

Mas desde antes havia um clima desfavorável ao cinema. Um caso particularmente escandaloso do início dos anos 1920, o estupro e assassinato da atriz Virginia Rappe, somado às censuras que tribunais estaduais impunham às obras, contribuíram negativamente para a reputação da indústria.

Com o ex-político republicano William Harrison Hays na liderança, foi fundada em 1922 a Motion Picture Producers and Distributors Association (hoje conhecida como MPA). O objetivo da associação era deflagrar uma grande campanha de relações-públicas para melhorar a imagem de Hollywood e assim, atrair investidores em Wall Street.

No mesmo ano em que o crash econômico começou a se desdobrar, o publisher Martin Quigley, um católico devoto, e o padre Daniel Lord, em sintonia com as preocupações da Igreja, criaram o Motion Picture Production Code.

O texto proibia “perversão sexual”, nudez, ridicularização da religião, “danças indecentes”, retratos de relacionamentos inter-raciais e escravidão de brancos. Além disso, os valores católicos deveriam ser promovidos nas histórias — o bem sempre vence o mal e criminosos e malfeitores são punidos. A categoria de “perversão sexual”, é claro, abrangia qualquer expressão de sexualidade que não fosse a heterossexual e cisgênero.

Os estúdios, receosos com possíveis intervenções governamentais, escolheram apoiar o Código, que foi conduzido por Jason Joy e depois, pelo Dr. James Wingate. Embora Hays não fosse o aplicador, o Código ficou conhecido popularmente como “Hays Code”.

Novos acordos

A adesão dos cinco principais estúdios às diretrizes do código, embora o estivessem financiando, estava sendo nitidamente ignorada, como os exemplos mencionados acima mostram. Mas os big five -- os estúdios que, basicamente, eram Hollywood: Warner Bros., Paramount, MGM, Fox e RKO -- já enfrentavam outros obstáculos.

Filmes que brincavam com os papéis e identidades de gênero de fato eram incomuns e não eram particularmente bem-vindos”, diz o autor. “Essas cenas eram frequentemente cortadas por censores locais ou pelos cinemas que os exibiam, como no caso de O Sinal da Cruz, de Cecil B. DeMille.

O Motion Picture Production Code foi pressionado pela Igreja, e boicotes estavam acontecendo em centros urbanos. Assim, o código foi reeditado e rebatizado. O Production Code of 1934 foi administrado por Joseph I. Breen, o censor linha-dura na liderança da Production Code Administration, a PCA.

Naquele mesmo ano, foi fundada a Legião Nacional da Decência, ligada à Igreja, que dizia aos católicos quais filmes eles deveriam ver ou não, de acordo, é claro, com os parâmetros do Código. Eles criaram um sistema de classificação: os filmes que recebiam o selo com a letra “A” passavam pelos filtros dos censores, aqueles com o “B” eram parcialmente repreensíveis e, os que recebiam o temido C eram os condenados.

Naquela época, segundo reportagem da revista Time, os americanos adeptos ao catolicismo formavam um grupo de 20 milhões de pessoas e, segundo a própria Legião, ela tinha dois milhões de membros.

Enquanto isso, o então presidente Franklin B. Roosevelt, do partido Democrata, por meio do pacote de medidas New Deal, criava diversas agências regulatórias. Os big five não queriam saber de regulações ou de brigas com os católicos — eles queriam bilheterias lucrativas, então continuaram a custear o Código.

Os estúdios eram donos de salas de cinema por todo o país, o que fez o público ter acesso apenas aos filmes aprovados pelos censores. Breen se tornou um dos homens mais poderosos do meio cinematográfico. O PCA revisava cada linha escrita nos roteiros e o logo da entidade aparecia nos créditos das produções.

Foi nesse período em que foram realizadas grandes obras do cinema, como Casablanca, … E O Vento Levou, O Mágico de Oz e Cidadão Kane.

No armário

No livro The Celluloid Closet (1981), do jornalista e ativista Vito Russo, e no documentário que o adapta, O Outro Lado de Hollywood (1995), o autor defende que o Código fechou a única abertura que havia para a representação da comunidade LGBTQIA+.

O documentário mostra que, para Russo, a representação não era a ideal do ponto de vista político. Homens afeminados eram ridicularizados em contexto de humor pastelão ou os personagens não tinham profundidade. Mas, apesar disso, já havia alguma coisa acontecendo.

O Outro Lado de Hollywood resgata cenas dos primórdios da imagem em movimento e do cinema mudo e até início dos anos 1930 para exemplificar. Em The Dickson Experimental Sound Film (1895), homens dançam abraçados e, em Sangue Vermelho (foto), dois afeminados saltitam no que Russo chama de “a primeira cena em um bar gay”.

Vieira, autor de Forbidden Hollywood, discorda. Ele diz que autores como Russo, ao interpretar o período, carecem de acurácia factual e são pautados por uma agenda ativista. Não havia necessariamente, segundo Vieira, um “cinema queer” naquela época, pois as abordagens se restringiam à chacota, não tendo mensagens de endosso ao estilo de vida gay.

A tal da ‘cena no bar gay’ em Sangue Vermelho foi em um restaurante de Greenwich Village [em Nova York], com cabines e duas drag queens fazendo uma performance no corredor. Não houve bar gay nenhum [nos cinemas] até trinta anos depois, em Tempestade sobre Washington”, argumenta. “As únicas pessoas que tinham ideia de que gays existiam eram as que trabalhavam em cinemas ou fazendo filmes, onde estilos de vida alternativos eram tolerados, desde que não fossem chamativos.

Ele pontua que, naquele tempo, muitos estados proibiam atos homossexuais, igrejas os condenavam, e ser declaradamente gay acabaria com a carreira de um ator — se não em uma sentença à prisão.

De qualquer forma, as restrições impostas pelo Código prejudicaram a (pouca) representatividade dos LGBTQIA+ nas telas. Os cineastas opostos a elas foram obrigados a pensar em maneiras sutis de tratar desse tema sem entrar em choque com as diretrizes, o que se reflete no decorrer das décadas seguintes. Mas, ainda assim, esses diretores contestaram o Código.

Em Um Bonde Chamado Desejo, de Elia Kazan, o marido de Blanche (Vivien Leigh) não comete suicídio por ter sido flagrado na cama com outro homem, como ocorre na peça de Tennessee Williams que deu origem ao longa, mas por ter sido alvo do bullying da esposa. Ela diz, em uma cena, que o sensível marido estava perto de “coming out” – expressão que, em português, equivale a “sair do armário”.

Uma cena de Rebecca, a Mulher Inesquecível, de Alfred Hitchcock, traz Mrs. Danvers (Judith Anderson), a governanta, e Mrs. de Winter (Joan Fontaine) olhando as roupas deixadas no armário pela patroa morta de Danvers, por quem a governanta aparenta ter uma obsessão. Danvers acaricia o próprio rosto com uma peça de roupa da patroa.

No início dos anos 1960, William Wyler e Otto Preminger foram mais ousados. O primeiro, em Ben-Hur, mostrou cenas homoeróticas de guerreiros tomando banho e sugeriu romances entre eles. Já o segundo, em Tempestade sobre Washington, contou a história de um senador (Don Murray), casado com uma mulher, que é chantageado para que fique em segredo um caso que ele teve com outro homem no passado.

Finais e começos

Um acontecimento importante colaborou com o enfraquecimento paulatino do Código. Em 1947, uma decisão da Suprema Corte dos EUA encerrou o então vigente studio system. Naquele esquema, estúdios fechavam contratos exclusivos com atores, controlavam redes de salas de exibição e empresas que produziam rolos de película, e até mesmo influenciavam salas que operavam na independência. Segundo a corte, tratava-se de um monopólio.

A decisão abriu caminho para filmes europeus e independentes terem maior alcance no circuito exibidor — e eles não precisavam se submeter ao Código.

Após anos sem exercer poder algum, a PCA deixou de existir em 1967, quando a Motion Picture Association, já sem Hays no comando, implementou o sistema de classificações indicativas que até hoje está em vigor. Os estúdios aderiram voluntariamente.

Não muito tempo depois, em junho de 1969, eclodiram os protestos de Stonewall, em Nova York, que fizeram deslanchar o movimento dos direitos dos LGBTQIA+.

Vieira é cético em relação a uma possível sinergia entre os movimentos dos direitos civis daquela década e a indústria do cinema. O que as corporações querem é dinheiro, ele diz. “Se os direitos civis atraírem audiências, os filmes de direitos civis serão feitos”, analisa.

O autor exemplifica com A Luz É para Todos (1947), drama dirigido por Elia Kazan sobre antissemitismo nos EUA. A indústria, controlada por judeus, tinha medo de dizer a palavra “judeu” em filmes até o longa-metragem ser produzido por Darryl F. Zanuck, um protestante. E isso mesmo depois de os EUA lutarem na Segunda Guerra contra a Alemanha nazista, que assassinou seis milhões de judeus.

Fato é que as portas começaram a se abrir para a representatividade LGBTQIA+ nas telas. Nas décadas de 1970 e 1980, algumas produções de estatura tiveram personagens dessa comunidade e trataram de temas referentes a ela, como Um Dia de Cão, The Rocky Horror Picture Show e Parceiros da Noite.

No fim dos anos 1980, o mesmo período em que a crise de aids/HIV estava no ápice, surgiu o movimento conhecido como New Queer Cinema, assim chamado pela crítica e acadêmica B. Ruby Rich em artigos na revista Sight & Sound e no jornal Village Voice.

Tratava-se de uma leva de diretores surgindo do meio independente, como Gus Van Sant, Todd Haynes e Gregg Araki. O drama Garotos de Programa, com River Phoenix e Keanu Reeves, tornou-se o emblema do movimento que contestava os papéis sociais atribuídos aos gêneros, tabus sobre orientação sexual e instituições americanas, além de se valerem de linguagens experimentais e pós-modernas.

Outros títulos importantes dessa leva são Maurice, de James Ivory, Paris Is Burning, de Jennie Livingston, e Swoon — Colapso do Desejo, de Tom Kalin. Philadelphia ajudou a popularizar o tema da aids/HIV e rendeu o Oscar de melhor ator a Tom Hanks.

Os anos 2000 também nos trouxeram obras relevantes, como Cidade dos Sonhos, de David Lynch, Longe do Paraíso, de Todd Haynes, Hedwig: Rock, Amor e Traição, de John Cameron Mitchell e, é claro, O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee, indicado ao Oscar de melhor filme.

Na década seguinte, fomos brindados com mais longas-metragens de peso, como Me Chame pelo Seu Nome, Desobediência, Carol, Fire Island: Orgulho & Sedução e Moonlight — Sob a Luz do Luar, que venceu o Oscar de melhor filme, assim rompendo uma barreira que a Academia escolheu não romper uma década antes, ao preferir Crash — No Limite a Brokeback Mountain.

Desafios de hoje

Embora os direitos LGBTQIA+ tenham tido grandes avanços nos últimos anos, o New Queer Cinema tenha aberto vários caminhos e, com o passar dos anos, filmes hollywoodianos tenham se aberto cada vez mais a esses personagens, ainda há muitos passos a serem dados adiante, como mostram casos recentes de censura — os boicotes e as restrições institucionais, agora, ocorrem fora dos EUA.

Lightyear, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore foram barrados em países como os Emirados Árabes, Egito e Indonésia por terem cenas de beijo entre pessoas do mesmo sexo ou retratos de casais homoafetivos. A China, que hoje é um mercado de extremo valor para Hollywood, também tem resistido a essas produções.

Até o presente momento, os estúdios e as distribuidoras não têm demonstrado de maneira uniforme como reagir. Enquanto a Warner escolheu cortar um diálogo de Animais Fantásticos para este ser exibido na China, a Disney deixou Doutor Estranho 2 intacto, de modo que este não foi exibido no Egito, na Arábia Saudita e no Kuwait.

Outro dado preocupante é a recorrente ausência de pessoas transgênero ou não binárias das telas. O ano de 2020 foi o quarto consecutivo em que absolutamente nenhum grande lançamento teve personagens desse recorte social, segundo o estudo Studio Responsibility Index, feito pela Glaad e divulgado em 2021. A ONG analisou 400 títulos desse período para chegar a essa constatação. Nesse quesito, o cinema está ficando para trás em relação a outros meios, como o streaming.

Por outro lado, há motivos para celebrarmos. Houve aumento percentual de produções com personagens LGBTQIA+ naquele mesmo ano — foram registradas 22,7%, em comparação ao número de 18,6%, de 2019.

A pandemia, o estudo pondera, impactou drasticamente a rotina das produtoras e dos estúdios, de modo que o número total de filmes examinados diminuiu bastante. No ano de 2020, foram 44, e no anterior, 118. Para se chegar a um índice satisfatório e consistente, o crescimento deve ser proporcional ao de lançamentos no atual cenário pandêmico.

Os personagens LGBTQIA+ não brancos também tiveram aumento percentual. Foram 20 rastreados, em comparação aos 50 de 2019. Do primeiro grupo, 11 são de raça ou etnia não branca.

Também houve um aumento “significativo” de tempo de tela para esses personagens. Foram contados oito títulos “inclusivos”, de um total de dez, que deram mais de dez minutos de aparição aos LGBTQIA+. Isso representa 50% de um total de 20 personagens da comunidade. Nos dois levantamentos anteriores, mais de metade dos não heterossexuais ou cisgênero sequer chegaram a três minutos de tela.

Se há algo que podemos aprender com o Código — e, por que não, também com a pandemia — é que hoje não há barreira que segure a representatividade plural nas telas.

Publicado 30 de Junho de 2022
Arte de capa Lucas Ferreira | @lucaas_ferreira
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Coordenação Jorge Corrêa | @_jorgecorrea