Por André Catto, Fábio Titto e Thaís Matos *, g1 — São Sebastião


Parte das mortes na Vila Sahy, área mais atingida pela tragédia em São Sebastião (litoral norte de São Paulo), ocorreu depois do desabamento de casas no limite onde a prefeitura permitiu ocupação.

É o que aponta mapeamento do g1 a partir de dezenas de entrevistas com moradores, parentes de vítimas, sobreviventes resgatados, além de informações do Corpo de Bombeiros, da Defesa Civil e da comparação entre fotografias e imagens de satélite.

Era madrugada do domingo de Carnaval (19) e um temporal forte já castigava a região havia algumas horas. Desavisados do perigo, moradores e turistas dormiam quando a lama da encosta começou a descer o morro, arrastando junto árvores, casas, carros e vidas.

Balanço da Defesa Civil aponta 54 mortes, das quais 53 em São Sebastião e uma em Ubatuba. As mortes se concentraram na Vila Sahy, bairro formado em meados dos anos 1980 e e habitada por funcionários de casas de veraneio, hotéis e pousadas da Barra do Sahy, praia que fica do outro lado da rodovia Rio-Santos.

A ocupação é irregular por estar em área de proteção ambiental. Pressionada pelo Ministério Público Estadual a resolver a situação quando o bairro já estava consolidado, a prefeitura "congelou a área" em 2009 e prometeu urbanizá-lo em dois anos, o que não ocorreu. Em 2016, o congelamento foi oficializado em lei. Foi, então, estabelecido um perímetro: dentro dele, ninguém poderia ampliar as casas já existentes. Fora, ninguém poderia construir.

Pelas imagens de satélite, é possível ver que os deslizamentos e parte das mortes ocorreram na área que margeia a linha congelada e em uma região mais íngreme da vila, desfavorável à urbanização (leia mais abaixo).

O g1 identificou ao menos 15 vítimas nessa área a partir de conversas com familiares e equipes de resgate. Também perto da área limite estavam casas alugadas em que ao menos seis pessoas morreram, segundo a dona dos imóveis, Jocélia Maria Nogueira dos Santos, de 37 anos.

Vila Sahy: veja antes e depois do local do resgate

O g1 conseguiu localizar onde a maior parte das vítimas da Vila Sahy foi encontrada.

Mortes na Vila Sahy — Foto: Arte/g1

Veja quem são as vítimas identificadas na Vila Sahy:

Vila Sahy: veja onde morreram vítimas da tragédia

Vila Sahy: veja onde morreram vítimas da tragédia

  1. Nascido na cidade pernambucana de Maraial, Samuel de Lima Silva tinha 30 anos, três deles morando com a família em São Sebastião, que havia se mudado para lá em busca de uma vida melhor. Também morreram os filhos dele: Ellyza Nayanne Celestino de Lima, 9, e Yan Allyab Celestino de Lima, 8. Eles foram encontrados bem perto do morro, no fim da Rua 23 de Novembro, conhecida como Rua 3.
  2. Na rua de cima, a Ricardo de Queiroz, chamada também de Rua 1, foram encontrados Kledson Souza e Pâmela Aparecida Pereira, que estavam bem perto do morro.
  3. Em uma casa ali perto, na Travessa Pica-Pau, Ednaldo Santos da Silva, 38 anos e natural de Vera Cruz (BA), vivia no litoral paulista havia cerca de três anos. A sua namorada, Lívia da Silva Santos, 36, que também era baiana, mas morava na capital paulista, e a filha dela, Sophia Silva, 9, estavam lá para passar o Carnaval.
  4. Ainda na Travessa Pica-pau ficava a residência do casal Mário Rodrigues Silveira, 85, e Neusa Luiz Rodrigues Silveira, que foi morar na região 30 anos atrás.
  5. Natural do Piauí, o casal Adriel de Souza Costa e Maria dos Santos Gomes da Conceição estava em uma casa na Rua 1. O bebê deles de apenas 2 anos sobreviveu após ser resgatado dos escombros, mas o sobrinho deles, Keison, de 2 anos, não sobreviveu. Beatriz Farias Macedo, 26 anos, estava grávida de 3 meses, também morreu.
  6. Na Travessa Pica-Pau, foi achada a menina Dandara Cazé, 11, que estava com o primo Eduardo Lionel, 11 anos. Os dois, que eram de Santo André, no ABC Paulista, foram criados praticamente juntos e estudavam na mesma escola.
  7. O casal Donaria Santos Figueiredo, 41, e Robério Lima Saldanha, 46, era de São Paulo e passava o Carnaval com a família na região. A irmã dele Rosângela Saldanha da Silva, 50, também está entre as vítimas. No mesmo ponto, foi encontrado Eliton Prado da Silva, 32, que passava o Carnaval na Barra do Sahy na companhia de amigos.
  8. O bebê Levy Santos de Oliveira, de apenas 9 meses, foi resgatado sem vida após uma árvore atingir a casa em que ele vivia, na Travessa São Jorge.
  9. Uma família que morava na Travessa São Jorge morreu na tragédia. Ângela Benício, a filha Bruna e a neta Maria Clara, além de Genival Tomaz, marido de Ângela e padrasto de Bruna, ficaram soterrados.
  10. Na Rua 1, a idosa Maria Anunciada da Silva, de 79 anos, vivia com a filha e o genro, que sobreviveram à tragédia.
  11. Na travessa São Jorge, Jailda de Jesus, 37 anos e 24 deles vivendo na Vila Sahy. Ela deixou quatro filhas.

Vítimas do deslizamento — Foto: Arte/g1

Antes e depois

O g1 reuniu imagens que mostram o antes e depois da Vila Sahy. Tomadas por lama e destruição, as ruas ficaram irreconhecíveis.

A área com mais vítimas fica em um terreno com uma inclinação suscetível a inundações e em alguns pontos, mais íngremes, desfavoráveis à urbanização.

Vila Sahy: veja antes e depois do local do resgate

Vila Sahy: veja antes e depois do local do resgate

Ocupação desordenada

Área mais afetada pelas chuvas que castigaram o Litoral Norte, a Vila Sahy é, na verdade, uma ocupação irregular iniciada em 1987 na borda do Parque Estadual da Serra do Mar. O local fica em uma área de preservação ambiental e às margens da rodovia Rio-Santos.

Imagens mostram o crescimento da Vila Sahy, onde ocorreu tragédia no Litoral Norte de SP

Imagens mostram o crescimento da Vila Sahy, onde ocorreu tragédia no Litoral Norte de SP

Ao menos duas avaliações – uma feita em 1996 pelo Instituto Geológico (IG), órgão vinculado ao governo paulista; outra realizada em 2020 pelo Ministério Público Estadual – apontaram riscos de deslizamentos no local.

De acordo com um relatório da Prefeitura de São Sebastião, até 2018, havia 648 imóveis e 779 famílias na área. A comunidade é formada, principalmente, por pessoas de baixa renda. A maioria trabalha em condomínios, casas de alto padrão e hotéis da região.

Área 'congelada'

Em 2009, uma área da Vila Sahy foi delimitada e "congelada", termo técnico usado pela Prefeitura de São Sebastião para identificar a área que teria que ser regularizada. Em 2016, houve novo congelamento, por meio de lei. Fora desse perímetro, ficou proibido fazer novas construções a partir dessa data.

Tanto em 2009 como em 2016, a prefeitura se comprometeu com o Ministério Público a regularizar essa região delimitada, o que jamais aconteceu - e o crescimento desordenado continuou.

Várias vítimas da tragédia já moravam no local havia muitos anos, bem antes dessa data, como o casal Mário Silveira e Neusa Silveira. No entanto, em outros casos, as pessoas estavam ali apenas a passeio.

As casas onde elas estavam ficavam no limite da área "congelada" ou perto dela. Esse trecho foi o mais destruído com os deslizamentos de terra

Área congelada na Vila Sahy — Foto: Arte/g1

Além disso, um levantamento do Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo (IGC) aponta que essa área no alto da Vila Sahy tem trechos com inclinações que superam os 17º – e que, portanto, são "desfavoráveis à urbanização" (veja na imagem abaixo).

Imagem de análise do IGC mostra índices de inclinação na Vila Sahy. — Foto: Reprodução

Investigação

Em março de 2021, então, o Ministério Público Estadual entrou com uma ação civil pública contra a prefeitura cobrando a regularização da área – o que inclui ligação de água, luz, urbanização e liberação das zonas de risco.

No documento, obtivo pelo g1, a Promotoria fez um alerta dizendo que a ocupação de morros no local era "uma tragédia anunciada". O MP afirmou ainda que o crescimento desordenado na Vila Sahy aconteceu por falta de fiscalização da administração municipal, já chefiada pelo prefeito Felipe Augusto (PSDB), e que havia riscos aos moradores.

A Justiça determinou a regularização fundiária do local no ano passado, o que ainda não saiu do papel. A prefeitura recorreu alegando que os prazos estabelecidos não podiam ser cumpridos porque antes seria preciso concluir os estudos geológicos. O recurso foi negado.

O g1 questionou a Prefeitura de São Sebastião sobre o processo de regularização e por quais motivos não impediu novas construções na área, congelada desde 2009, mas não havia obtido resposta até a publicação da reportagem.

Autoridades sabiam dois dias antes do desastre

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que é um órgão federal, alertou o governo do estado de São Paulo e a Prefeitura de São Sebastião que iriam ocorrer inundações e deslizamentos de terra.

Mesmo assim, moradores relatam, porém, que não foram alertados pela Defesa Civil e que não houve nenhum pedido para que deixassem suas casas mesmo diante do perigo de deslizamento.

Após a tragédia, tanto o governo federal quanto o estadual e o municipal têm sido cobrados sobre a forma como as pessoas foram avisadas, já que houve uma série de alertas e os órgãos de proteção sabiam do risco.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, reconheceu que faltam ferramentas eficazes de alerta.

Essa tragédia nos deixa também várias lições aprendidas e a gente vai estar sempre aperfeiçoando. A maneira de fazer o alerta, a maneira de se comunicar com as pessoas.
— Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo
Tarcísio diz que alertas por SMS antes da tragédia em São Sebastião não tiveram efetividade

Tarcísio diz que alertas por SMS antes da tragédia em São Sebastião não tiveram efetividade

O ministro da Integração, Waldez Góes, também admitiu que a forma de alerta não é eficaz e informou que o governo federal vai atuar para uma mudança nas ações.

"É importante a gente entender que nós precisamos criar alertas localizados e com preparação dessa comunidade. Quando fala de sistema de alerta por sirene, por exemplo, e toda a comunidade ser preparada para isso, a igreja, a escola, comerciante, a sociedade", disse.

'Necessidade de criar alertas localizados', diz ministro Waldez Góes sobre sistema de aviso de temporal às comunidades

'Necessidade de criar alertas localizados', diz ministro Waldez Góes sobre sistema de aviso de temporal às comunidades

Procurada pelo g1, a Prefeitura de São Sebastião não havia se manifestado até a última atualização desta reportagem.

* Colaboraram Fernanda Calgaro, Poliana Casemiro, Marilia Rocha e Ricardo Gallo, em São Paulo

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!