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Como o rombo das Americanas abala o trio de ouro do capitalismo brasileiro

Andrei Netto, da Headline | Paris

Headline mergulhou no universo de engenharias contábeis, governança e apetite de alto risco da varejista que balança a credibilidade do trio Lemann-Sicupira-Telles

3 de fev. de 2314 min de leitura
3 de fev. de 2314 min de leitura

Que nome um rombo de R$ 20 bilhões nas contas de uma empresa gigante de seu setor teria se o escândalo tivesse explodido em uma companhia estatal no Brasil? "Fraude"? "Corrupção"? No mundo empresarial privado brasileiro, um buraco equivalente é chamado de "inconsistência contábil" desde 11 de janeiro.

No caso Americanas, a maquiagem encobre uma miríade de suspeitas de crimes, incompetências e conivências que passam por engenharias contábeis problemáticas e governança opaca. Tudo em meio a uma filosofia empresarial de obsessão pela criação de valor para o acionista e com suspeitas de leniência dos próprios acionistas, auditores, bancos e reguladores. Esse coquetel agora coloca em xeque a cultura do trio formado por Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, sócios da 3G Capital e referências absolutas do mercado no Brasil.

Ao longo dos últimos 15 dias, Headline ouviu ex-executivos, auditores, investidores, advogados corporativos e analistas de mercado para entender os bastidores da queda das Americanas – uma companhia com 93 anos de história, quinta maior do setor varejista do Brasil, R$ 32,2 bilhões de faturamento em 2022, com 100 mil empregos diretos e indiretos, 50 milhões de clientes, R$ 15 bilhões em ativos e, o mais importante, em recuperação judicial e com R$ 47,9 bilhões em dívidas, valor corrigido três vezes — sempre para cima — nos últimos dias.

O primeiro fio a ser puxado pela investigação em curso na Justiça é o papel do suspeito número um, o CEO histórico da empresa, Miguel Gomes Pereira Sarmiento Gutierrez, 30 anos de companhia, dos quais 20 no seu posto máximo. Ele é tido desde já como o pivô das eventuais fraudes contábeis na gestão da varejista porque, entendem experts, o rombo não teria acontecido sem a intenção de ocultar resultados por parte de diretores e a suposta conivência ou negligência de membros do Conselho de Administração.

Desde a eclosão do escândalo, com o pedido de demissão do CEO recém-empossado, Sergio Rial – executivo vindo do banco Santander e que em 10 dias abandonou o barco, informando do buraco em seu casco –, muitas críticas têm pesado sobre as gigantes de auditorias KPMG e PricewaterhouseCoopers (PwC). As duas empresas, ex e atual auditoras das Americanas, assim como os bancos que financiavam as operações, têm esclarecimentos a prestar. Mas, por mais que tenham sido atores do caos, não foram causadores do rombo.

Logo a suspeita principal recai sobre a gestão de Gutierrez, a quem Headline procurou por meio de intermediários, sem retorno. Nos bastidores da companhia, o ex-CEO, hoje na Espanha, é definido como um administrador "restrito", "extremamente austero", um "pão duro", longe de ser "um gastador". "Ninguém acha nem a foto do filho da puta", resume um ex-executivo das Americanas que prefere não se identificar, referindo-se à sua discrição.

Mas, segundo Rial, as "inconsistências" encontradas na contabilidade das Americanas datariam de antes de 2022, durante a administração de Gutierrez. Executivos de empresas e experts em auditoria ouvidos por Headline são taxativos: é bastante improvável que o CEO não estivesse informado de um buraco da ordem de R$ 20 bilhões – um montante superior aos ativos da empresa – contraído junto ao sistema financeiro. "É óbvio que o Gutierrez tem uma responsabilidade grande no sentido de que ele era quem comandava o dia a dia da empresa quando tudo isso aconteceu", diz um analista de mercado próximo dos acionistas.

Não à toa, bancos como Bradesco e Santander – do qual Rial foi presidente-executivo até o final de 2021 – solicitaram à Justiça e obtiveram a quebra do sigilo do email de Gutierrez nos últimos 10 anos. Mas em um dos pedidos acolhidos pela Justiça de São Paulo há vários outros alvos – um indicativo das suspeitas de que não tenha se tratado de um ato isolado do ex-CEO. Dentre os 23 nomes, estão executivos com implicação direta, como Fábio Abrate, ex-diretor financeiro da empresa, membros do Conselho de Administração e até seus familiares.

Dois deles chamam atenção em particular: Paulo Alberto Lemann e Cecília Sicupira Giusti, envolvidos no pedido de quebra de sigilo feito pelo Bradesco na condição de ex-conselheiros da empresa. Paulo Alberto é filho de Jorge Paulo Lemann, e Cecília, de Carlos Alberto Sicupira.

Jorge Paulo Lemann, banqueiro de investimentos brasileiro, caminha para almoçar durante a Allen & Company Sun Valley Conference, em 06 de julho de 2022, em Sun Valley, Idaho. Os empresários mais ricos e poderosos do mundo da mídia, finanças e tecnologia se reunirão no Sun Valley Resort esta semana para a conferência exclusiva. Foto: Kevin Dietsch/Getty Images/AFP
Homem mais rico do Brasil, Jorge Paulo Lemann participa da Allen & Company Sun Valley Conference, em julho de 2022, em Sun Valley, Idaho (EUA). Foto: Kevin Dietsch/Getty Images/AFP

Reunidos na holding de investimentos 3G Capital, Lemann, Sicupira e Telles reinaram ao longo de quatro décadas como os grandes exemplos a serem seguidos no mundo dos empreendedores no Brasil. A filosofia deles, testada com sucesso a partir dos anos 1980, tinha um caráter inovador: homens de negócios que se dispunham a conquistar sucesso empresarial sem se amparar no Estado, escapando do comportamento patrimonialista do mundo dos negócios brasileiro.

Essa nova "cultura", que defendia o conceito de "meritocracia" e encarnava a fé no mercado no Brasil, fundia elementos do neoliberalismo de Milton Friedman e da gestão "meritocrática" à Jack Welch, ex-presidente emblemático da General Electric entre 1981 e 2001. Sua filosofia premiava a austeridade absoluta, o corte constante de custos, a obsessão pela lucratividade no curto prazo, as longas jornadas de trabalho e a dedicação incondicional dos executivos à empresa, o salário de base achatado e os bônus por desempenho. Sua estratégia de crescimento era baseada em um imenso apetite pelas fusões e aquisições. O resultado foi um conglomerado mundial que controla gigantes como Anheuser-Busch InBev, Burger King, Kraft Heinz, América Latina Logística, Tim Hortons e... Americanas.

Hoje, em tempos de ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança, espécie de selo de boas práticas administrativas) e novas gerações de profissionais muito menos sensíveis ao amor à camisa e mais ao prazer de trabalhar com uma missão social, essa filosofia parece bem menos atraente. Mas o principal motivo para as críticas à cultura 3G Capital e aos "três gigantes" do mercado brasileiro diz respeito à estratégia e à governança de suas empresas.

Por mais que se acuse o CEO e se aponte o dedo ao sistema financeiro por ter compactuado com os excessos nas Americanas, e as auditoras por incompetência na identificação dos rombos, os olhos dos críticos – Lula entre eles – se voltam à atuação dos acionistas majoritários da companhia. Aí entra a 3G Capital. Até 2021, o fundo do triunvirato detinha 53,3% do capital das Lojas Americanas. Hoje, após uma reestruturação do negócio, detém 29,2%, como acionistas de referência.

Do trio, Sicupira, ex-CEO, é quem sempre foi o mais próximo do negócio. "A distinção que se há de fazer é que Sicupira sempre foi o responsável pelas Lojas Americanas desde a aquisição, lá atrás, e pertence ao Conselho de Administração da empresa. Os outros dois são acionistas de referência, mas não participavam do dia a dia da companhia", explica um analista de mercado. "Além dele, um dos filhos do Jorge Paulo, Paulo Alberto, é membro do conselho. Essas pessoas potencialmente vão ter que responder sobre uma possível má administração."

Proximidade do conselho

Para analistas, além dos vínculos gerados pela presença de acionistas de referência no Conselho de Administração e pela proximidade entre Gutierrez e Sicupira, o próprio modelo de gestão das Americanas é uma prova de proximidade com a 3G. Até o rombo, as Americanas incorporavam a cultura de seus acionistas e eram uma empresa agressiva no mercado, que atuava de forma "alavancada" – no caso específico, por linhas de crédito. O centro de seu modelo de relação com fornecedores era emitir "duplicatas descontadas", ou seja, uma operação de giro operacional em que o varejista emite ao fornecedor uma promessa de compra cujo valor pode ser resgatado no sistema financeiro.

Arte: Carol Macedo/HDLN

Nesse sistema, as Americanas poderiam se comprometer a adquirir um produto por R$ 100 junto ao fornecedor, por exemplo. Para tanto, emitiriam uma duplicata — um título de crédito que comprova uma operação de compra e venda — de R$ 120. De posse dela, o fornecedor poderia obter seu pagamento real, R$ 100, junto a um banco credor. Os R$ 20 restantes seriam os juros pagos pelo custo do crédito. As Americanas pagariam o produto não mais ao fornecedor, mas ao banco, em um prazo estendido, a um custo financeiro de R$ 20. Entre uma e outra operação, o produto seria vendido ao cliente final e os gestores ainda teriam tempo de aplicar o valor recebido no mercado financeiro, antes de reembolsar o banco pela duplicata.

Essa transação não é ilegal e é uma prática corrente há décadas no varejo. Entre os auditores ouvidos por Headline, egressos das grandes companhias de auditoria do mundo, a hipótese mais comentada é a de que as Americanas tenham registrado em sua contabilidade o produto como estoque (no exemplo citado, ao custo de R$ 100), mas omitido o passivo financeiro (de R$ 20, no exemplo). "Uma das hipóteses que se cogita é que esse reconhecimento de despesa financeira não teria sido feito, fazendo com que o passivo se mantivesse reduzido", explica Bruno Salotti, ex-auditor da Arthur Andersen, doutor em Controladoria e Contabilidade e professor de Contabilidade Financeira da USP (Universidade de São Paulo).

Uma segunda hipótese dos auditores é de que em uma operação de compra de um produto por R$ 100, mas com um custo financeiro (juros) de R$ 20, a aquisição tenha sido registrada como R$ 120 em estoque, sem a informação sobre a despesa bancária. Trata-se do que se chama de um problema de "geografia contábil", um registro impreciso de débitos e dívidas, algo que precisaria ser corrigido a título de transparência e boa governança. "Nessa hipótese haveria um erro de apresentação contábil – chamar de custo das mercadorias vendidas o que é despesa financeira, e chamar de fornecedores o que são empréstimos", explica Salotti. "Mas nesse caso não haveria um ajuste do passivo em R$ 20 bilhões."

A suspeita central é de que as Americanas tenham atuado ao longo de anos omitindo os custos financeiros de suas operações, de forma a inflar de maneira artificial os resultados da empresa, impulsionando as ações da companhia no mercado financeiro. Headline entrou em contato com o agora diretor-presidente e de Relações com Investidores da empresa solicitando uma entrevista, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. A companhia tem limitado a sua comunicação a notas oficiais desde o início da crise. 

Fábio Alperowitch, fundador e diretor da FAMA Investimentos, e considerado um dos especialistas brasileiros em investimentos ESG, vê no resultado – o rombo – muito mais do que "um erro". "É, para mim, obviamente uma fraude. Quem cometeu, com qual objetivo, quem estava envolvido, quem estava ciente, se foi ou não detectado na empresa por falta de controle ou por negligência são coisas que a gente vai ter que descobrir", diz ele. "Mas, primeiro, acho impossível que seja um erro e, segundo, acho impossível que tenha uma só pessoa envolvida."

Conflito de interesses

Aqui entra o potencial conflito de interesses. Gutierrez e a direção da companhia seriam beneficiados pela suposta fraude ao omitir esse passivo financeiro porque receberiam bônus pela performance da empresa, homologada pelos membros do Conselho de Administração. De outra parte, acionistas – 3G à frente – receberiam dividendos pelos resultados positivos. Por fim, bancos teriam continuado a alimentar o sistema, oferecendo linhas de crédito até o momento da explosão, quando Rial revela o rombo. Uma situação lucrativa para muitas partes – até que o escândalo viesse à tona.

Nos últimos 10 anos, as Americanas distribuíram R$ 1,7 bilhão em dividendos aos seus acionistas, de acordo com levantamento da TradeMap. Para efeitos de comparação, Magazine Luiza distribuiu R$ 939,1 milhões no período. Entre janeiro e setembro de 2022, R$ 333,2 milhões partiram dos cofres das Americanas em direção às contas de seus investidores. Trata-se do maior valor distribuído em uma década – em um momento no qual o buraco de R$ 20 bilhões já existia, segundo Rial. Em 2020, os dividendos haviam chegado a R$ 296 milhões. "Ninguém que tem US$ 25 bilhões faz fraude para ganhar US$ 80 milhões", contra-argumenta um ex-executivo das Americanas, descartando que Lemann, Telles e Sicupira estivessem preocupados em aumentar os dividendos que recebem da empresa a ponto de participar de fraudes contábeis.

As Americanas têm 93 anos de história. É a quinta maior do setor varejista do Brasil e registrou R$ 32,2 bilhões de faturamento em 2022. Foto: Mauro Pimentel/AFP

Para esse administrador, fragilizado pelo escândalo nas Americanas e por recentes acusações de má gestão financeira também na InBev, o trio estaria sob ataque de seus críticos históricos e eventuais inimigos no mercado. Até o papel de Lemann como filantropo é alvo de artilharia, lembra o ex-executivo, indignado com o que considera críticas excessivas. "Você pode ter um executivo que fez coisas erradas. Mas não é o modus operandi dos caras. Sonegação de impostos, de horas extras, funcionários com jornadas desumanas... Nada disso faz sentido", assegura. "Você acha que o cara que tem essa cultura consegue crescer, se desenvolver e ter centenas de milhares de pessoas que gostam de trabalhar lá?"

De fato, a "cultura 3G" tem uma legião de fãs nos meios empresariais brasileiros. Mas os elogios foram substituídos por críticas entre os grandes credores das Americanas. Ao ajuizarem ações sobre o caso, Bradesco, Safra e Santander estão tentando derrubar a chamada "personalidade jurídica" do caso – que isola a empresa da "pessoa física" de seus acionistas. Isso significa buscar a reparação nos bens pessoais de Lemann, Telles e Sicupira em caso de comprovação de fraudes ou de conduta abusiva pelas investigações em curso na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Polícia Federal e Ministério Público Federal (MPF).

Dissimulação

Na única oportunidade em que se manifestaram sobre o caso, em nota oficial, Lemann, Telles e Sicupira reiteraram não ter participado de qualquer esquema de dissimulação das contas de suas empresas, incluindo as Americanas. "Jamais tivemos conhecimento e nunca admitiríamos quaisquer manobras ou dissimulações contábeis na companhia. Nossa atuação sempre foi pautada, ao longo de décadas, por rigor ético e legal", diz o texto, argumentando que bancos e PwC não sinalizaram qualquer irregularidade. "Assim como todos os demais acionistas, credores, clientes e empregados da companhia, acreditávamos firmemente que tudo estava absolutamente correto."

Para o advogado Fernando Lottenberg, membro de comitê de auditoria, conselheiro de administração e consultor de empresas, a explicação sobre o buraco nas Americanas — observando de fora — pode ser híbrida. O errado, entende, seria a empresa e os bancos não declararem os valores reais das operações, omitindo o "risco sacado", os juros para as instituições financeiras que não aparecem nas contas, aparecendo como se fossem o pagamento integral do produto ao fornecedor. "A empresa inflou os seus resultados, distribuiu dividendos além do que seria o real, e hoje, provavelmente, a conta – não sei de caixa, mas de patrimônio – está muito abaixo do que eles vinham dizendo, ou está negativa, e a empresa está insolvente."

Lottenberg não acredita que a influência de Lemann, Telles e Sicupira tenha sido no sentido de orientar a qualquer procedimento irregular, mas que sua cultura empresarial pode ter influenciado. "Se você pega os prospectos que eles distribuem, no qual falam da empresa, fala-se muito sobre resultado a qualquer custo", aponta. "Isso tem a ver com essa cultura, vamos dizer, 'agressiva' do trio, que foi estimulada como um modelo de capitalismo brasileiro e internacional, e que em alguma medida estimula esse tipo de comportamento por parte dos executivos."

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