Na representação em que pede a prisão do tenente-coronel Mauro Cid Barbosa, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, a Polícia Federal citou trocas de mensagens entre o oficial e um dos seus subordinados no Palácio do Planalto, o sargento Luís Marcos dos Reis. Nos diálogos, eles tratam sobre a inserção de dados falsos de vacinação da contra a Covid-19 referente à mulher de Cid, Gabriela Santiago Cid, nos sistemas do Ministério da Saúde. Ambos foram alvos da operação que apura o esquema criminoso, na manhã desta quarta-feira.
No documento, ao qual O GLOBO teve acesso, os investigadores apontam que Cid solicitou apoio de Reis para obter um cartão de vacinação preenchido com doses da vacina em nome de Gabriela. Os dados indicam, segundo a PF, que o sargento, com o auxílio de seu sobrinho, o médico Farley Vinícius Alcântara, obteve o cartão da Secretaria de Saúde de Goiás. Dados como data, lote, fabricante e aplicador da vacina teriam sido retirados pelo profissional de saúde de um cartão de uma enfermeira vacinada na cidade de Cabeceiras, no interior daquele estado.
Veja trechos dos diálogos:
- Mauro Cid: (…) contigo aí, tá? Joga na minha conta. E vê aí em Goianésia se tem algum cara que não sei cadastrado no Conectsus. Vou ver depois, no Exército, se tem algum enfermeiro que você pode fazer para mim.
- Luís Marcos dos Reis: Eu já voltei já, coronel, mas eu deixei lá com meu sobrinho lá, vou ver se ele consegue lá. É, tem só essas duas pessoas, tem o meu sobrinho e o Vandir lá. Aí tento aqui. Eu estou indo amanhã para a missão lá de Guaratinguetá! No retorno, a gente vai cair em cima disso aí, tá bom? Não falei para ele que ficou questionando porque nenhum coordenador ficou sabendo e tal. Eu falei assim, foi ordem do coronel e chegando aí pessoalmente, eu explico para o senhor o que aconteceu. Falei pro tenente Alencar, pode deixar que eu administro lá.
Bolsonaro se emociona ao falar de busca e apreensão em sua casa
- Relatório da CGU: Bolsonaro não esteve no local onde vacina foi registrada
No mesmo dia, Cid recebeu um arquivo em formato PDF com a carteira de vacinação digitalizada de Gabriela. Em seguida, o tenente-coronel acionou Eduardo Crespo Alves, sargento do Exército. Cid procurou Alves para que, com a carteira de vacinação, ele incluísse os dados no aplicativo ConecteSUS. É por lá que seria possível fazer o download do certificado de vacinação.
No dia seguinte, Eduardo Crespo Alves relata a dificuldade de inserir a informação sobre a vacinação no sistema. Isso ocorria porque o lote citado na carteira de vacinação não tinha sido enviado para o Rio de Janeiro, gerando um erro na inserção.
EDUARDO CRESPO ALVES: Chefe, 90% já confirmado, tá? É só deu um probleminha lá com o negócio do, da, do CPF, mas a pessoa teve que sair. E amanhã eu já resolvo, já dou pronto para o senhor, tá ok?
- 'Ninguém pode ficar exposto': veja mensagens que mostram como auxiliar de Bolsonaro incluiu dados de vacinação
Bolsonaro nega atuação em fraude: 'Não existe adulteração da minha parte'
Já no dia 24 de novembro, Alves afirma que o sistema não estava "aceitando" a inclusão. "O lote que veio para o Rio de Janeiro é diferente. Não tem esse lote aqui, então você, o sistema não aceita. Eles entendem como fraude, entendeu? Ela está pedindo aqui se a gente consegue a unidade que ela falou que vai fazer um contato lá com o pessoal do SUS. Mas precisa saber o nome da unidade", explicou.
Com a dificuldade para incluir os dados no sistema, Cid aciona um terceiro envolvido, o advogado e militar da reserva Ailton Barros. As mensagens obtidas pela Polícia Federal mostram a tentativa de Ailton, em conversa com Cid, de entrar na conta da esposa do ajudante de ordens no sistema Gov.br.
No dia 30 de novembro, Ailton Barros envia para Cid novos áudios em que relata, de forma velada, o andamento do que ele chamou de “missão”.
AILTON GONÇALVES MORAES BARROS: Ninguém pode ficar exposto, não é, particularmente, particularmente, quem você sabe, né? Não pode ficar. Mas está caminhando bem.
Crimes em apuração
De acordo com a Polícia Federal, as inserções falsas, que ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, tiveram como consequência a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, a condição de imunizado contra a Covid-19 dos beneficiários. Com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes imposta pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa, no caso, a pandemia de Covid-19.
“A apuração indica que o objetivo do grupo seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a Covid-19”, informou a PF. As ações ocorrem dentro do inquérito policial que apura a atuação do que se convencionou chamar “milícias digitais”, em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal.
Os fatos investigados podem configurar os crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.
Em entrevista na porta de sua casa, Bolsonaro negou ter adulterado seu cartão de vacinação.
— Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final — afirmou Bolsonaro na porta de sua casa, num condomínio em Brasília. — Em momento nenhum eu falei que tomei a vacina e não tomei.