Classificado em “Faca” como “o dia em que perdi a inocência”, no calendário de Salman Rushdie aquela era originalmente a data da palestra a ser ministrada para cerca de mil pessoas em um prestigioso instituto na bucólica Chautauqua, no noroeste do estado de Nova York, à beira do Lago Erie. Rushdie alertaria sobre a necessidade de proteger escritores cada vez mais ameaçados por regimes, ideologias e religiões autoritárias mundo afora. Ironia.
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Foi quando sofreu o ataque do muçulmano Hadi Matar, um jovem de origem libanesa, de 24 anos, da vizinha Nova Jersey. Com uma faca, pouco antes de o evento começar, o autor do atentado pulou no palco do anfiteatro e golpeou o escritor 15 vezes, no pescoço, no abdômen, em uma mão e em uma perna, no peito e no rosto.
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Em “Faca” , dividido em dois tomos, “O anjo da morte” e “O anjo da vida”, Rushdie faz descrição minuciosa do atentado, que teria durado longos 27 segundos.
Leia trechos do livro “Faca”, de Salman Rushdie:
“Para ser franco, ‘Faca’ era e é um livro que teria preferido mil vezes não precisar escrever. Havia e ainda há outro livro na minha cabeça, que eu pensava que poderia suceder ‘Cidade da vitória’. Um romance sobre um misterioso e enigmático ‘College’. E, a fim de me preparar para esse livro, eu estivera relendo ‘A montanha mágica’, de Thomas Mann, e ‘O castelo’, de Franz Kafka, duas grandes obras sobre microcosmos misteriosos e enigmáticos do tipo que eu esperava que meu ‘College’ pudesse ser.”
“Fiz de tudo para evitar o clichê do elefante na sala, mas a verdade incontornável era que havia uma droga de mastodonte gigantesco no meu espaço de trabalho, agitando a tromba, bufando e com um cheiro para lá de forte. Eu escrevera sobre mastodontes absurdistas e cômicos em meu romance ‘Quichotte’, sobre pessoas em Nova Jersey se transformando em mastodontes, e agora aqui, com sua própria ligação a Jersey, estava um animal todo meu, insistindo em ser levado em consideração.”
“‘Faca’ constitui um acerto de contas. Digo a mim mesmo que é minha maneira de assumir o controle do ocorrido, tornando-o meu — tornando-o obra minha.Coisa que aliás sei como fazer. Lidar com um atentado homicida não é algo que saiba fazer. Transformar uma coisa em outra faz com que isso se torne algo de que posso me encarregar. Em teoria, pelo menos. Um livro sobre uma tentativa de assassinato pode ser uma maneira de o quase assassinado começar a lidar com o fato”.
‘Faca’
Autor: Salman Rushdie. Tradução: Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 232. Preço: R$ 69,90.