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Brasil

Comissões de verificação já impediram matrícula de 1,5 mil cotistas pelo país

Bancas de instituições federais rejeitaram inscrições de alunos que teriam violado reserva de vagas a pretos e pardos
Na UFF, aproximadamente 440 alunos tiveram a matrícula indeferida desde 2017 — cerca de 10% do total de alunos cotistas submetidos à banca Foto: Brenno Carvalho/13-12-2017
Na UFF, aproximadamente 440 alunos tiveram a matrícula indeferida desde 2017 — cerca de 10% do total de alunos cotistas submetidos à banca Foto: Brenno Carvalho/13-12-2017

RIO — Era novembro de 2017 quando Eduardo (nome fictício) recebeu uma carta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde estudava há dois anos, pedindo que se apresentasse à comissão de verificação criada para evitar fraudes na Lei de Cotas, aprovada em 2012.

Diante de uma banca de cinco pessoas, foi orientado a ficar calado, olhando para uma câmera, por 30 segundos. Duas semanas depois, recebeu a resposta: estava impedido de seguir matriculado. O estudante, que se autodeclarou pardo, entrou com recurso na própria UFRGS, e seu caso segue em aberto, enquanto tenta concluir curso na área médica.

— Mas ali perdi o interesse na faculdade. É complicado cursar algo sem saber se vai ficar ou se vai ser expulso. Foi humilhante, não te deixam falar nada, não falam os critérios da avaliação — relata o estudante, filho de um negro e uma branca, e o primeiro da família a ingressar em uma universidade pública.

Eduardo foi um dos primeiros brasileiros submetidos a uma comissão de verificação de cotas. Desde então, em todo o país, ao menos 1.526 matrículas foram rejeitadas após avaliações visuais, que checam as autodeclarações de alunos ingressantes por meio das políticas de ações afirmativas.

Das 104 instituições de ensino superior federal consultadas pelo GLOBO, 39 afirmaram já ter criado comissões de verificação — que, embora não sejam obrigatórias, são vistas por especialistas como um mecanismo para evitar fraudes no ingresso de estudantes cotistas. Outras 27 declararam atuar nesses casos apenas mediante denúncias, aceitando a autodeclaração para matrícula. As demais não responderam aos questionamentos da reportagem.

Das 39 comissões, 29 foram criadas apenas a partir de 2018 — ou seja, muitas delas estão realizando a primeira análise neste ano. As mais de 1,5 mil matrículas recusadas até agora consideram dados fornecidos por 14 instituições. Entre as universidades consultadas, o número de processos indeferidos varia de 5% a 30%, dependendo da região do país.

Na UFRGS, por exemplo, o número de possíveis fraudes evitadas por essa comissão chegou a 30% em 2018. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), cerca de 440 alunos tiveram a matrícula indeferida desde 2017 — cerca de 10% do total de alunos cotistas submetidos à banca.

Investigados na UFRJ

Nos últimos anos, várias denúncias de fraude foram feitas a ouvidorias e ao Ministério Público Federal (MPF). Na Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 30 alunos são investigados. Em sua grande maioria, os casos estão relacionados aos cursos mais concorridos — Medicina e Direito. Coletivos negros engrossam o número de reclamações, mas encontram dificuldades na comprovação das irregularidades, que dificilmente geram expulsões.

Um dos principais obstáculos no desdobramento dessas denúncias, quando não há comissão, é a autodeclaração como único documento a ser aceito, como previsto na Lei de Cotas.

— Dificilmente há casos de expulsão (sem a comissão). As universidades foram coniventes até recentemente, entendendo que bastava a autodeclaração — opina Renato Machado, procurador regional dos Direitos do Cidadão do MPF no Rio de Janeiro, responsável por investigar algumas das denúncias recebidas na cidade do Rio.

A expansão das bancas ocorreu em 2018, após o Ministério do Planejamento criar uma normativa que a exige em casos de concurso público. A regra reacendeu o debate sobre como lidar com a definição de quem se enquadra dentro de cotas raciais. A falta de uma resolução por parte do Ministério da Educação (MEC) fez com que a fiscalização carecesse de padronização.

Segundo o MEC, “compete exclusivamente à instituição definir critérios a serem aplicados para candidatos que atendam suas políticas de ação afirmativa”.

Na maioria dos casos analisados, as comissões são compostas por cinco pessoas, divididos entre servidores, técnicos e alunos. Os critérios de formação pregam a diversidade de seus membros, priorizando a presença de negros na composição. São utilizados critérios fenotípicos (aparência) para aferição da condição autodeclarada.

— Todos os candidatos devem passar por análise prévia, tal como já vinha ocorrendo em concursos. Temos nos manifestado em ações propostas pelos candidatos que se sentem prejudicados. A UFRJ, por exemplo, vem retardando a implementação de controles — afirma Machado, que cobrou a instauração dessas comissões nas instituições do Rio, em 2018. No estado, a UFRJ foi a única federal que não adotou a recomendação.

Questionada pelo GLOBO, a UFRJ respondeu estar preparando uma comissão que adotará novos mecanismos para evitar fraudes ainda neste ano.

Não há consenso entre especialistas sobre a forma de funcionamento das comissões. Nem se cabe ao Estado definir quem é negro ou não. O diretor da ONG Educafro, Frei Davi, era a favor das autodeclarações como única forma de garantir as políticas afirmativas. Após denúncias de fraudes, passou a incentivar a instauração das bancas.

O diretor da Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), Humberto Adami, aponta para necessidade de definir critérios e de se considerar a miscigenação presente em todas as regiões do país.

— Em muitas ocasiões, a percepção de quem é preto ou pardo vai muito de quem está fazendo a apuração. Isso é uma dificuldade, mas não há outra forma, sempre alguém vai ter que decidir isso — afirma. — O que é um pardo no Rio Grande do Sul e o que é um na Bahia? Você precisa levar isso em consideração para evitar injustiças.

* Estagiário, sob supervisão de Cristina Fibe