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Brumadinho: Conheça a história por trás de poema em que Drummond critica a Vale

'Lira Itabirana' foi publicado em 1984 em pequeno jornal mineiro
Operários extraem hamatita no Pico do Cauê, em Itabira: Drummond denunciou efeitos da mineração em sua cidade natal Foto: Arquivo Público Mineiro
Operários extraem hamatita no Pico do Cauê, em Itabira: Drummond denunciou efeitos da mineração em sua cidade natal Foto: Arquivo Público Mineiro

RIO — “O Rio? É doce/A Vale? Amarga”, os versos de Carlos Drummond de Andrade, cunhados em 1984 no poema “Lira Itabirana”, se tornaram populares nos últimos anos por um triste motivo: seus tons quase proféticos diante do desastre de Mariana, em 2015, e da recente tragédia de Brumadinho.

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Diante da circulação do poema no Twitter ou em correntes no WhatsApp, é de se esperar que surjam dúvidas quanto a autoria dos versos. Mas “Lira Itabirana” foi de fato escrita por Carlos Drummond de Andrade. O nome do poema é uma referência a Itabira, cidade onde, em 1902, nasceu Drummond e, quatro décadas depois, foi fundada a Vale do Rio Doce.

Um fato capaz de gerar dúvidas quanto à autoria de “Lira Itabirana” é o de que o poema não foi publicado em um livro, e sim na 58ª edição do pequeno jornal “O Cometa Itabirano”. Nos moldes de publicações como “O Pasquim”, o jornal foi fundado em 1979 por jovens estudantes da cidade, que presentearam o conterrâneo ilustre com o primeiro exemplar. Drummond gostou tanto da iniciativa que passou a enviar espontaneamente artes, telegramas, crônicas, bilhetes e poemas inéditos à redação.

Itabira na década de 1930, antes da mineração Foto: Arquivo Público Mineiro
Itabira na década de 1930, antes da mineração Foto: Arquivo Público Mineiro

O jornal ajudou Drummond a se reconciliar com a sua cidade natal em seus últimos anos de vida. De acordo com reportagem publicada no GLOBO em 19 de agosto de 1987, logo após a morte do autor, Drummond havia se afastado de Itabira justamente pela tristeza em ver a cidade mineira se descaracterizar diante das ações das mineradoras.

“Lira Itabirana”, Carlos Drummond de Andrade, 1984

I

O Rio? É doce.

A Vale? Amarga.

Ai, antes fosse

Mais leve a carga.

II

Entre estatais

E multinacionais,

Quantos ais!

III

A dívida interna.

A dívida externa

A dívida eterna.

IV

Quantas toneladas exportamos

De ferro?

Quantas lágrimas disfarçamos

Sem berro?

“Nas esquinas, as conversas em torno da figura de Drummond lembravam suas advertências quanto à destruição da sua cidade natal pela ação das mineradoras. Muitos justificavam sua decisão de não retornar a Itabira diante da descaracterização da cidade histórica criada no século XVII e que desde a década de 40 começou a perder a riqueza e a beleza, que ele imortalizou em sua obra", dizia a reportagem, de acordo com relatos de moradores de Itabira na época.

"Mas essa separação da cidade foi quebrada em 1979, quando um grupo de estudantes itabiranos fundou "O cometa itabirano", que tinha por objetivo reatar as relações do poeta com Itabira, estremecidas desde que ele decidiu se afastar definitivamente da cidade, com sua atitude sendo interpretada por muitos itabiranos como uma crise de estrelismo”, completava o texto.

Livro detalha críticas de Drummond à mineração

As críticas de Drummond ao impacto da mineração nas cidades mineiras não estão apenas em “Lira Itabirana”, embora hoje este seja o seu mais famoso poema sobre o assunto.  Em “O maior trem do mundo”, outro poema de 1984 publicado no “Cometa”, o poeta escreve:

O maior trem do mundo

Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel

Engatadas geminadas desembestadas

Leva meu tempo, minha infância, minha vida

Triturada em 163 vagões de minério e destruição

O maior trem do mundo

Transporta a coisa mínima do mundo

Meu coração itabirano

O impacto da mineração na obra de Drummond foi analisada em detalhes pelo escritor José Miguel Wisnik em “Maquinação do mundo” (Companhia das Letras), publicado no ano passado. Um exemplo desta relação é o Pico do Cauê, morro que fazia parte das memórias de Drummond e que virou uma cratera por causa da extração de minério.

Propaganda da Vale de 1970 faz referência a verso de Drummond, que criticava a companhia Foto: Acervo O Globo
Propaganda da Vale de 1970 faz referência a verso de Drummond, que criticava a companhia Foto: Acervo O Globo

— A pedra, a dureza mineral, está presente de muitos modos em Drummond. O sentimento do mundo em que o ser opaco aparece, o obstáculo, está entranhado na poesia dele. E nesses poemas fundamentais, “No meio do caminho” e “A máquina do mundo” isso se revela em duas dimensões diferentes — comentou Wisnik em entrevista ao GLOBO .

No livro, Wisnik ainda lembra uma propaganda da Vale do Rio Doce de 1970 que fazia referência a um dos versos mais famosos de Drummond. O anúncio dizia: “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”.

"Nosso caminho sempre esteve cheio de pedras. Mas essa tem um significado todo particular. Com ela, alcançamos esta semana a marca de 20 milhões de toneladas de minério de ferro exportados. Nós e as companhias associadas. Mais 2,5 milhões do que todo o ano passado. O que representa a entrada no País de diversas divisas na ordem de 150 milhões de dólares. É a comprovação de que nossos objetivos de desenvolvimento estão sendo atingidos. Somos especialistas em transformar pedras em lucros para a Nação. É de mais pedras como essa que o Brasil precisa", completava o texto do anúncio.