Cultura

Petrobras corta patrocínios de 13 projetos culturais incluindo festivais de cinema, música e teatro

Estatal segue determinação do governo Bolsonaro
Lançamento do Filme "Seja o que Deus Quiser', na Premeire Brasil de 2002, no Cine Odeon BR Foto: Fábio Seixo / Agência O Globo
Lançamento do Filme "Seja o que Deus Quiser', na Premeire Brasil de 2002, no Cine Odeon BR Foto: Fábio Seixo / Agência O Globo

RIO — Alguns dos maiores projetos de cinema, teatro e música do Brasil começaram a semana menores. Tradicional apoiadora do setor, a Petrobras anunciou ontem o corte do patrocínio de 13 iniciativas culturais que apoiava historicamente. A decisão foi divulgada pela rádio CBN a partir de um documento enviado pela empresa aos deputados federais Áurea Carolina e Ivan Valente, ambos do PSOL, ao qual O GLOBO teve acesso. Os últimos repasses da empresa aos 13 projetos somaram R$ 12,7 milhões.

Procurada, a assessoria de imprensa da Petrobras respondeu que a estatal “segue realizando apoio a projetos culturais”, mas que seu orçamento para patrocínios “sofreu redução à luz do Plano de Resiliência ” da estatal. O texto acrescenta: “A Petrobras está revisando sua política de patrocínios para readequar seu orçamento e em alinhamento ao posicionamento de marca da empresa, com intenção de maior foco nos segmentos de ciência, tecnologia e educação, principalmente infantil.”


Na área da música, o corte afeta o Prêmio da Música Brasileira, a Casa do Choro do Rio de Janeiro e o Clube do Choro de Brasília. No cinema, a lista inclui Festival do Rio, a Mostra de Cinema de São Paulo, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o Festival de Cinema de Vitória, o Anima Mundi, a Sessão Vitrine e o CineArte, cinema de rua paulistano. Já no teatro foram afetados o Festival Porto Alegre em Cena, o Festival de Curitiba e o Teatro Poeira, no Rio.

Não chega a ser uma surpresa, posto que era promessa de campanha. A decisão segue o plano do governo Bolsonaro de reavaliar os contratos de patrocínio da empresa. Em fevereiro, o próprio presidente publicou no Twitter que, embora reconheça “o valor da cultura e necessidade de incentivá-la”, acredita que esse financiamento “não deve estar a cargo de uma petrolífera estatal”.

No dia 11 de abril, Diego Pila, gerente de patrocínios da Petrobras, em audiência pública sobre patrocínios estatais na Comissão de Cultura da Câmara, em Brasília, antecipou que o orçamento destinado à comunicação, que abrange a cultura, havia sofrido um corte de 30% em 2019, de R$ 180 milhões para R$ 128 milhões. A empresa acenou com uma redistribuição: segundo Pila, 19 projetos da área de música devem receber R$ 10 milhões.

Novos caminhos

Durante todo a existência do Festival do Rio , que este ano deve chegar, no segundo semestre, à sua 21ª edição, a Petrobrás foi patrocinadora do evento. Primeiro como BR Distribuidora, um dos braços da estatal, e a partir de 2003 como Petrobras, quando os investimentos em patrocínio feitos pelos diversos setores da empresa foram consolidados e uniformizados. De 2000 a 2002, inclusive, foi patrocinadora exclusiva, contribuindo com R$ 3,5 milhões, o correspondente a 90% do orçamento total. No ano passado, após oito anos de sucessivos cortes, chegou a R$ 750 mil. Este número significou 20% do orçamento total, reconfigurado para absorver os cortes resultantes da crise econômica.

De acordo com Vilma Lustosa, os organizadores estão no mercado tentando conquistar outros patrocinadores. Mas não existe o risco de o festival não se realizar:

— Não queremos abrir mão disso, porque esse setor gera economia. Se está desvalorizado, temos que mostrar os números que pode gerar. É uma obrigação nossa, um compromisso que temos com a sociedade. Não podemos deixar esse hiato. Vamos trabalhar para que o festival aconteça e que aconteça lindo — diz ela.

Idealizador do Prêmio da Música Brasileira , José Maurício Machline conta que estava fechando um projeto mais amplo para a 30ª edição da cerimônia, em 2019, que incluiria um documentário e uma turnê. O produtor (que em 2017 conseguiu fazer a premiação sem petrocínio, com ajuda de parceiros e dos artistas, que abriram mão de cachê) segue captando com outras empresas via Rouanet para não deixar de realizar o evento este ano.

— No fim do ano passado estávamos com as negociações avançadas. O fim do patrocínio nos pegou de surpresa, já que, segundo a própria Petrobras, o Prêmio era uma das principais ações em termos de retorno de imagem e marca — comenta Machline. — Não acho que empresas como a Petrobras devam ser vistas como mecenas da arte. Por isso mesmo eles sempre foram rigorosos nos processos para analisar o quanto de retorno cada projeto gera.

Um dos diretores da Casa do Choro , no Rio de Janeiro, Paulo Aragão informou que o instituto foi comunicado na semana passada do corte. No entanto, afirmou que a casa seguirá funcionando.

— Claro que a retirada do patrocínio nos impacta, então é possível que seja uma série (de shows) menor. Mas não deixaremos de fazer— afirmou.

Os organizadores do Anima Mundi , festival internacional de animação realizado concomitantemente no Rio e em São Paulo, já haviam sido avisados de que haveria o corte de patrocínio da Petrobras este ano. Das 26 edições do evento, realizado desde 1993, só as três primeiras não tiveram patrocínio da estatal.

Segundo César Coelho, um dos quatro diretores do Anima Mundi com Aída Queiroz, Lea Zagury e Marcos Magalhães, a Petrobras contribuía em média com R$ 1,2 milhão anuais em um orçamento que girava em torno de R$ 3 milhões. Nos últimos anos, diz Coelho, esse valor diminuiu para R$ 700 mil.

— Não faz muito sentido (o corte) . O patrocínio cria um vínculo da empresa com a população, e isso tudo a custos interessantes. É um investimento mínimo em troca de um retorno enorme. Ainda mais considerando que é uma empresa que se identifica muito com o país. Ainda preciso entender isso — diz ele.

Jogo de cintura

O diretor do Anima Mundi diz que os organizadores pretendem continuar em busca de novos patrocinadores tanto aqui no Brasil quanto no exterior. Um dos principais argumentos utilizados é um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas para o evento Rio de Janeiro a janeiro no qual se atesta que a última edição do evento, no ano passado, movimentou R$ 26,8 milhões e gerou R$ 2,6 milhões em impostos; trouxe 13,5 mil  turistas ao Rio de Janeiro (nacionais e estrangeiros), que gastaram entre R$ 300 (nacionais) e R$ 400 (estrangeiros), e gerou um público estimado de 50 mil pessoas (Rio de Janeiro e São Paulo).

A Mostra Internacional de Cinema em São Paulo contava com patrocínio da Petrobrás desde 1999, quando realizou a sua 23ª edição -- este ano, será realizada a 43ª edição. A estatal chegou a entrar com R$ 2,1 milhões de aporte, passou para R$ 1,4 milhão e, no ano passado, destinou apenas R$ 750 mil para o evento. Em média, a empresa respondia por 30% do orçamento total.

Segundo Renata de Almeida, que dirige a Mostra de SP, a comunicação oficial do encerramento do contrato de patrocínio foi feita pela Petrobras duas semanas atrás e era esperada:

— É uma visão um pouco velha e desgastada do setor cultural, como se fosse um bando de gente querendo ganhar dinheiro fácil. E não como um setor que contribui para a sociedade, com aumento de economia e geração de empregos.

Apesar do corte, Renata diz que o festival se realizará com certeza. Ela disse também que tem garantidos alguns patrocínios, embora alguns deles dependam da Lei Rouanet, parada no momento, para se concretizar:

— Vamos ter que acomodar, fazer adaptações — diz ela. — Mas a ideia é criar condições para que o valor dos ingressos não aumentem e as sessões e eventos gratuitos não acabem. Para mim, mais grave do que o corte da Petrobrás é o silêncio do governo com relação à Lei Rouanet.

Com o objetivo de aumentar o alcance da produção independente brasileira para além do eixo Rio-São Paulo, a Sessão Vitrine promove a distribuição de 16 filmes por ano em mais de 25 cidades do território nacional, com sessões a preço popular de R$ 12 e realização de pré-estreias desses longas com debates. O projeto teve duas edições iniciais, em 2011 e 2013, e em 2017 voltou, com o patrocínio da Petrobrás. O contrato, que foi renovado apenas em 2018, tinha valor de R$ 2,3 milhões.

Em fevereiro, os organizadores da Sessão Vitrine Petrobras foram avisados que não renovariam o contrato. Em março e neste mês não houve lançamento. Para Talita Arruda, coordenadora do Sessão Vitrine Petrobras, o desafio é entender como manter o projeto funcionando. Mas classifica a atitude da direção da estatal como "um retrocesso:

— É preocupante. Era a única empresa de porte grande que podia dar aporte para projetos audiovisuais. Esses cortes não foram discutidos, não teve nenhum tipo de conversa. E sempre foram nossos parceiros — disse ela.

Diretor-geral do Porto Alegre em Cena , um dos festivais de teatro mais tradicionais do calendário brasileiro, Fernando Zugno diz que o fim do apoio da estatal, depois de mais de duas décadas, gera um impacto inevitável na programação (na última edição, a mostra recebeu R$ 510 mil da empresa). Mas descarta qualquer risco de o evento não ser realizado, em setembro.

— A Petrobras é a maior patrocinadora da cultura no Brasil, e certamente que sua saída é um baque para qualquer projeto. Mas ainda contamos com o patrocínio da Brastemp e o apoio da prefeitura de Porto Alegre. Estamos conversando com outras empresas e  temos certeza que o Porto Alegre em Cena vai seguir com a mesma potência — comenta  Zugno.  — Quem trabalha com cultura no Brasil já tem um traquejo, sabe que é impossível ter um orçamento fechado. As companhias internacionais com quem temos uma longa relação acompanham o momento no Brasil, e muitas se dispõem a colaborar, até onde é possível.

Produtor cultural e captador de recursos para projetos, Guilherme Afif Domingos Filho pondera que o corte poderia ser gradual.

— Deveria ser uma ação paulatina, para não fragilizar projetos de longa duração, consolidados, que contavam com o apoio da empresa.