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'Bolsonaro não tem motivo para não me nomear', diz reitora eleita pela UFRJ

Denise Pires de Carvalho, primeira mulher escolhida para ocupar o cargo, defende relação de 'ajuda mútua' com o MEC e ações para garantir igualdade de gênero
Denise Pires Carvalho foi eleita em primeiro turno para a reitoria da UFRJ Foto: Pedro Teixeira
Denise Pires Carvalho foi eleita em primeiro turno para a reitoria da UFRJ Foto: Pedro Teixeira

RIO- A maior universidade federal do país demorou quase 100 anos para escolher uma mulher como reitora. E, agora, a UFRJ espera ver sua escolhida, a médica Denise Pires de Carvalho, ser nomeada pelo presidente Jair Bolsonaro.

A consulta vencida pela professora serve como base para formulação de uma lista tríplice de nomes que o colégio eleitoral da universidade envia para a Presidência da República. A lista deve ser feita no dia 30 de abril e a decisão final sobre quem dirigirá a UFRJ até 2023 é de Bolsonaro, a partir dos três nomes enviados.

Em sua primeira entrevista após ser eleita, Carvalho, que tem 54 anos, disse ao GLOBO que o presidente não teria motivos para evitar sua posse e que pretender ter uma relação de parceria com o Ministério da Educação (MEC), independentemente de quem estiver à frente da pasta.

Quase sem voz "de tanto debater durante a campanha", afirmou ainda que vai defender a autonomia da universidade e blindá-la para que todo tipo de debate seja respeitado.

Com um discurso em defesa da igualdade de gênero nos cargos de liderança, Carvalho diz que pretende ampliar as creches universitárias e vai estudar medidas para facilitar o acesso de mulheres às bolsas da instituição.

A futura reitora também quer rever a maneira como Sistema de Seleção Unificada (Sisu) é utilizado na UFRJ, fazendo com que alunos inscritos no segundo semestre possam ser remanejados para o primeiro, evitando o aumento dos níveis de evasão.

A professora, que já havia se candidatado no último pleito, afirma que pretende instituir já para o vestibular de 2020 a Comissão de Verificação da Autodeclaração de estudantes que tentam ingressar na instituição por meio das cotas raciais, a fim de evitar fraudes no sistema.

A senhora é a primeira mulher eleita reitora da UFRJ em quase 100 anos. O que isso representa?

Significa que a sociedade está mudando, está reconhecendo lideranças femininas. Isso é muito bom. A igualdade de gênero é importante. Na carreira científica, mais de 50% da força é feminina e não ter uma representação não é normal. Dependendo das qualificações, se 50% da força é feminina, também é normal que haja 50% nos cargos de comando. Somos todos iguais. Há uma mudança acontecendo na sociedade brasileira.

A senhora foi escolhida pela comunidade acadêmica, mas ainda precisa ser nomeada pelo presidente. Teme que ele não a nomeie?

Particularmente, não temo. Muitas pessoas dizem que precisamos aguardar, porque é um momento difícil e pode não haver a nomeação. Por que eu não temo? Porque não há nenhum motivo para que eu não seja nomeada. Tenho uma trajetória de dedicação à universidade, sempre com o nome da UFRJ acima de qualquer questão, e é assim que pretendo continuar agindo, não só nos próximos quatro anos como reitora, mas durante toda minha trajetória como docente. Não há motivo para a nomeação não acontecer. Fui escolhida em primeiro turno pela comunidade acadêmica com mais dois concorrentes, mostrando a legitimidade do processo, com número de votantes muito grande. Estou muito confiante na nomeação, mas vamos aguardar.

O MEC está em crise. Como isso impacta as universidades públicas?

A situação é dramática, independentemente do gestor do MEC. Temos a emenda constitucional 95, que estabelece teto de gastos e impacta o orçamento de educação, ciência e tecnologia. Espero que o governo se sensibilize com essa questão e não corte como vem cortando. O resgate do nosso orçamento é mais importante até do que quem é o gestor do MEC nesse momento. Não há como ter um país melhor sem investimento em educação, ciência e tecnologia. No momento, temos uma crise no ministério, mas espero que o próximo ministro ou ministra, já que dizem que o atual não continuará, seja uma pessoa que conheça muito bem o sistema, que tenha uma trajetória importante e defenda a educação de qualidade no Brasil. Não deve importar se o nome vem do partido A, B ou C, mas que tenha domínio do sistema. Você me perguntou sobre minha nomeação: o presidente pode nomear um dos três da lista para reitor da UFRJ, mas, se ele não me nomear, não será porque não tenho uma trajetória acadêmica importante e nem porque não mereço. A escolha do ministro deve ser muito cuidadosa.

A eleição na UFRJ é vista como um termômetro da relação do MEC com as universidades federais. Como será seu diálogo com o ministério?

A relação da UFRJ com o MEC será de ajuda mútua. Queremos que o MEC tenha um olhar especial para UFRJ. Queremos ajudar no que for preciso para que o Brasil avance.  Somos a maior federal do país, uma das melhores universidades da América Latina. Queremos voltar a ser a melhor de todas e, para isso, precisamos da ajuda do MEC. O ministério também vai precisar das universidades para que o sistema educacional melhore. Para nós, não importa quem vai estar sentado como ministro, o importante é que tenhamos um objetivo comum de melhorar a educação pública no país.

Hoje a universidade tem um déficit de R$ 171 milhões. O que pretende fazer em relação ao orçamento?

O orçamento desse ano já está comprometido, pois foi aprovado pela atual gestão no final do ano passado. Assumindo, num primeiro momento vamos implantar uma comissão permanente de orçamento para fazer análise orçamentária. Vamos discutir mês a mês até o fim do ano para propor o orçamento para o próximo, com participação ampla da comunidade. Essa vai ser uma gestão mais transparente. Haverá necessidade de cortes e eles serão discutidos e priorizados com a comunidade universitária.

Quando assumir como reitora, qual deve ser sua primeira demanda junto ao Ministério da Educação?

Temos problemas graves de infraestrutura acumulados nos últimos anos. A primeira demanda vai ser com relação a investimento para restaurar o prédio da reitoria  e o alojamento universitário, que sofreram incêndios. É dramática a situação dos estudantes e da reitoria. As pró-reitorias estão todas separadas em salas de diferentes prédios. Alunos estão tendo aulas em prédios com condições precárias, em salas emprestadas.

Qual será a primeira medida de sua gestão?

Vamos implantar políticas de dimensionamento de pessoal, porque isso não existe na UFRJ no momento. Vamos dizer de forma transparente quantos funcionários e docentes estão lotados em cada unidade. É uma gestão administrativa pura e simples. Junto a isso, vamos propor criação de conselhos superiores que não existem, como o de extensão e  o de administração e gestão de pessoas. Com relação à graduação, vamos estudar as taxas de evasão e estamos propondo que o Conselho de Ensino e Graduação rediscuta a maneira como a UFRJ usa o Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Apoiamos o Sisu, continuaremos utilizando ele, mas talvez com mudanças. A UFRJ faz dois processos de matrícula, um no início do ano e outro no segundo semestre. Se já inscrevermos o estudante do segundo semestre logo no primeiro, poderemos chamá-lo para ingresso antecipado caso haja evasão. Atualmente existe remanejamento da lista de aprovados, mas os alunos podem vir de todas as outras federais do país. A nossa proposta é ter uma lista da UFRJ, onde poderemos remanejar nossos alunos do segundo semestre. Vamos fazer uma simulação para ver se dessa maneira fica melhor. Várias federais já estão fazendo isso.

Pode haver redução no número de vagas?

De jeito nenhum. A redução no número de vagas não é do nosso interesse. Queremos fazer mudanças para identificar cursos nos quais possamos ampliar vagas. Sob nosso ponto de vista, não adianta ampliar vagas de forma linear, há cursos que têm altas taxas de evasão, enquanto outros têm alta procura e baixas taxas. Trabalharemos nos próximos quatro anos para ampliar vagas e não para reduzir, mas queremos fazer isso de forma a ampliar também o número de concluintes.

Muitas universidades têm instituído comissões de verificação de autodeclaração para acesso por cotas raciais, mas a UFRJ resiste na implementação desse grupo. Qual será sua postura?

Deveremos implantar a comissão já para o vestibular de 2020. Vamos estudar o modelo usado na Uerj e na UFF, que são bem-sucedidos, e implementar o nosso.

A UFRJ tem sido alvo de investidas externas. Recentemente, um ofício do PSL tentou impedir um debate na universidade. Como atuará para garantir a autonomia universitária?

A universidade é um ambiente de pluralidade. Não podemos ter nenhum tipo de cerceamento de ideias. Então, me assusta essa questão de tentar dizer para a sociedade que a universidade é ideológica, como se ideologia fosse uma coisa ruim. É didático que a universidade ensine que todos nós, seres humanos pensantes, temos algum tipo de ideologia. Nenhuma ideologia deve ser apagada no âmbito da universidade. A universidade é um lugar de todas elas, não é o lugar de nenhuma delas. Quando se fala contra uma ideologia é porque há uma outra e se quer que ela seja a única a vigorar. A academia não se sustenta sem debate de ideias, sem o contraditório. É isso que nos faz avançar como sociedade e como país. Vamos defender a autonomia universitária para que todo e qualquer tipo de debate possa ser respeitado.

Nos últimos anos, o Brasil tem vivido uma fuga de cérebros. O corte no orçamento para a Educação e a Ciência e Tecnologia pode agravar essa crise. Como reverter o quadro?

Para que não haja essa fuga de cérebros é fundamental que o Brasil mantenha o investimento na área, que já é aquém do necessário. Ainda temos um número de doutores muito aquém do necessário para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, que proporciona o avanço socioeconômico e cultural da sociedade. Mesmo nos Estados Unidos o investimento não vem majoritariamente do setor privado. A interação com empresas é saudável e importante, mas não são elas que investem em ciência, tecnologia e inovação nos países desenvolvidos, são os governos, porque isso deve ser um projeto de governo. Enquanto não houver investimento e mudanças nas leis tributárias, que acabam aumentando o preço dos produtos usados em pesquisa, isso não vai mudar. Pagamos mais caro e esperamos mais para receber um produto para pesquisa. Ciência e tecnologia são atividades competitivas. É  dramática a situação do pesquisador no Brasil.

Ainda sente muito machismo por parte da academia?

O machismo existe e não é uma característica só do sexo masculino, é da sociedade, que é patriarcal há séculos. Mas isso vem mudando. O importante é que haja espaço para que mulheres se candidatem e que a sociedade respeite o trabalho feminino. Nosso trabalho é respeitado há muito tempo na base da sociedade, ou seja, somos maioria em alguns cargos de atendimento à população, como entre médicos, enfermeiros, professores. Mas, nos cargos de comando, já não é assim. O Congresso, por exemplo, é majoritariamente masculino. Espero que isso mude, nos países mais desenvolvidos a representação por gênero é igualitária, metade dos assentos são femininos, isso é justo. É um gênero que deve ser respeitado porque atua na sociedade de forma profissional. O gênero nao deve levar alguém para determinado cargo, mas sim a competência, a capacidade de liderança.

Há alguma medida específica destinada às mulheres que pretende implementar durante sua gestão?

Vamos escolher pró-reitores de forma equilibrada. Dos sete, pelo menos três serão mulheres, provavelmente quatro. Nos últimos anos, a maioria dos pró-reitores tem sido do sexo masculino. Não tem porquê não haver equilíbrio. Em toda gestão que depender da administração central, vamos procurar o equilíbro de gênero, é importante para sociedade ter os dois gêneros contemplados. Com relação a políticas específicas para mulheres, sabemos que a UFF tem avançado em questões como regras para concessão de bolsas com diferencial para mulheres e mulheres que tenham filhos. Vamos estudar o que tem sido feito lá e promover a discussão com a comunidade acadêmica. Atualmente, temos uma creche aquém do necessário. O ideal é que possamos fazer no futuro um complexo de creche e escolas de educação infantil. Há terreno para isso e está previsto no plano diretor da universidade. Não sei se conseguiremos nessa gestão, porque isso demanda investimento e estamos em época de crise orçamentária em todo país, mas vamos lutar por isso. É fundamental para o bom desempenho das estudantes e também para funcionárias e professoras.