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Política

Análise: Documento confirma que assassinato era política de Estado

Memorando da CIA é um achado de grande valor histórico
Ernesto Geisel no momento em que anunciava o fechamento do Congresso Foto: Orlando Brito 30/04/1277 / Agência O Globo
Ernesto Geisel no momento em que anunciava o fechamento do Congresso Foto: Orlando Brito 30/04/1277 / Agência O Globo

SÃO PAULO — O documento descoberto e divulgado pelo professor Matias Spektor nesta quinta-feira é um achado de grande valor histórico, por constituir uma poderosa confirmação material de que o assassinato de opositores era uma política de Estado da ditadura militar brasileira (1964-85). Ao descrever duas reuniões entre o presidente Ernesto Geisel e três generais logo nos primeiros dias de seu mandato, em 1974, o memorando produzido pela Central Intelligence Agency, a CIA, é uma prova de que o assunto era discutido pela cúpula militar em Brasília. Tortura e assassinato não eram coisas apenas de oficiais psicopatas fora de controle, que operavam pelo país afora em centros de extermínio como os DOI-Codis e cárceres privados; eram de pleno conhecimento e autorizados por superiores que usavam não apenas farda, mas também terno e gravata.

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Já se sabia que o presidente Ernesto Geisel (1974-79), o penúltimo dos generais e o homem que iniciou o desmonte da ditadura, concordava com a eliminação dos militantes de esquerda que ainda tentavam se insurgir contra a ditadura pela luta armada. A primeira prova foi exposta em 2003 no livro “A Ditadura Derrotada”, do jornalista Elio Gaspari. Trata-se da gravação de uma conversa entre Geisel e o general Dale Coutinho sobre o extermínio dos guerrilheiros no Araguaia. Ao ouvir o relato de Coutinho sobre a matança, Geisel diz que a prática é ruim, mas deveria continuar. “Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser”.

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O fato de ter sido produzido pela Central Intelligence Agency, a CIA, dá ao documento grande credibilidade e relevância. Por ter sido transmitido por seu diretor, William Colby, para o então secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, mostra quão caro e delicado o tema era ao governo americano. O combate a possíveis focos de esquerda na América Latina fora a razão do apoio americano ao golpe de 1964. Dez anos depois, o assunto ainda era de interesse de Washington. Em determinado ponto, a CIA usa o eufemismo “métodos extra legais” para descrever tortura e assassinatos. O termo merece atenção. Não é possível dizer se Geisel e seus interlocutores consideravam que o que o Estado brasileiro fazia era crime, mas a CIA considerava que sim. O governo americano sabia há muito tempo que os militares brasileiros torturavam e matavam opositores, mas não diziam isso às claras. Agentes de inteligência são do time dos diplomatas, craques em criar eufemismos para situações embaraçosas.

No meio do texto há uma pérola para historiadores: o momento em que o general Milton Tavares de Souza, então diretor do Centro de Informações do Exército (CIE), de saída do cargo, um homem do silêncio, informa a seu sucessor, Confúcio Danton de Paula Avelino, a Geisel e ao então diretor do Serviço Nacional de Informações, general João Figueiredo, que 104 pessoas haviam sido eliminadas pelo CIE no ano anterior. Cifras de mortos e desaparecidos produzidas por militares brasileiros são uma raridade. Vinda de um oficial tão graduado, indica que eles acompanhavam de perto o extermínio. Se sabiam o número de vítimas, pode-se arriscar que sabiam seus nomes e onde foram executadas.

Merece atenção o fato de o documento descrever que Geisel define o escopo da política “extra legal” a seus subordinados: apenas “subversivos perigosos” deveriam ser executados. Sempre que o CIE capturasse algum, seu chefe deveria consultar Figueiredo; e o “subversivo” só poderia ser executado após aprovação de Figueiredo. Tal informação leva a responsabilidade pelos assassinatos até o chefe do CIE e o do SNI, dois dos militares mais poderosos do governo – não à toa, Figueiredo seria o sucessor de Geisel. Pode-se inferir que, se a regra de Geisel foi seguida, Figueiredo foi consultado e autorizou a morte de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e seis militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), entre outros. Todos foram eliminados pela turma do CIE. Há muita pesquisa a ser feita neste campo.