Música

Por Braulio Lorentz, G1


Versões brasileiras de hits em inglês (melhores do que 'Juntos e Shallow now')

Versões brasileiras de hits em inglês (melhores do que 'Juntos e Shallow now')

O "juntos e shallow now" cantado por Paula Fernandes e Luan Santana fez muita gente generalizar nas mesmas redes sociais em que o medonho verso virou meme. A adaptação do sucesso de Lady Gaga, dizem, seria mais uma prova de que o Brasil é um país com histórico de versões ruins. Será?

Para entender o processo de recriar um hit internacional e responder essa dúvida, o G1 conversou com versionistas e vasculhou as paradas de sucesso das rádios. Os principais tipos de versões no top 100 nos últimos 50 anos mostram que:

  • Há artistas que se consolidaram gravando versões, como Sandy & Junior ("Imortal", "Quando você passa") e Angélica ("Vou de táxi")
  • Beatles quase sempre dá certo e não só na jovem guarda, mas também no fim dos anos 80, com Kiko Zambianchi ("Hey Jude") e Lulu Santos ("Lá vem o sol")
  • Pop de artistas para público jovem é cheio de versões, de Br'Oz e Rouge a Simony e KLB
  • Baladas românticas tendem a se dar bem, como nos casos de Rosana ("Amor e poder") e Luan & Vanessa ("Quatro semanas de amor")
  • O sertanejo gosta de se arriscar em versões, com destaque para Chitãozinho & Xororó ("O homem quando ama") e Leandro e Leonardo ("Eu juro")
  • Discos inteiros só com versões de um artista (Rita Lee com Beatles, Zé Ramalho com Bob Dylan) não entraram nas paradas

No processo de fazer uma tradução, são dois caminhos mais comuns: ser fiel à letra original, com uma tradução mais trabalhada. Ou se esquecer do sentido das palavras e se ater apenas à melodia da música original.

Após isso, é preciso ter autorização dos compositores originais. Na maioria das vezes, ser da mesma gravadora ajuda e o autor da versão quase não ganha direitos autorais.

"É como fazer uma parceria. Te entregam uma melodia e tem que botar as palavras, uma coisa que te aprisiona um pouco", explica Thedy Corrêa, do Nenhum de Nós. Ele é um dos autores de "Astronauta de Mármore", versão da "Starman", de David Bowie.

"Você tem a inspiração, métrica e melodia desenvolvidas. Uma música bem feita tem que ser redonda. Você tem que buscar algo natural, como se não existisse a versão original. A versão tem que ter vida própria, e isso é desafiador", explica Marcelão, baterista do Yahoo. Entre outras versões, ele transformou "Love bites", do Def Leppard, em "Mordida de amor".

"Fazer uma boa versão é mais difícil do que escrever uma letra nova. Tem que ir além do sentido, pensar na sonoridade das palavras", completa Marcelão.

Letrista do Skank e autor de "Tanto" (versão de Bob Dylan), Chico Amaral diz que fazer versões "parece um estudo em cima da canção". "A sonoridade é mais importante do que o sentido. Ser totalmente fiel é impossível, por causa da diferença de prosódia. Você tem que recriar, achar soluções o tempo todo. A nossa língua sempre vai ter outro resultado", explica Chico.

'E o que que a vida fez da nossa vida?'

Nelson Motta — Foto: Divulgação / TV Globo

"O maior problema é harmonizar a sonoridade das palavras em português com os sons da letra original", diz Nelson Motta. Ele lembra duas de suas versões para explicar o dilema.

"Algumas fiz livres por total incapacidade de entender o que dizia a letra original, como a de Pino Daniele, em dialeto napolitano, que virou 'Bem que se quis'", conta Nelson sobre a música conhecida na voz de Marisa Monte.

"Outras, como 'Eu te desejo amor' fiz não baseado na letra original, em francês ('Que rest-t-il de nos amours'), mas em uma versão em inglês que não tinha nada a ver e era muito melhor do que o original, 'I wish you love'. Foi a versão da versão", diz, citando a composição sob encomenda para Maria Bethânia.

Na opção de se guiar só pela sonoridade de maneira livre, Nelson indica: "É como fazia genialmente Haroldo Barbosa, mestre das versões, ele ia pelo som. 'Ïn the Mood' virou 'Edmundo' e fez sucesso."

'Quando faz amor, se olha no espelho'

O Yahoo hoje tem na formação Marcelão (bateria), Zé Henrique (baixo e voz) e Ricardo Rodrigues (guitarra) — Foto: Divulgação

Antes de "Shallow" e "Juntos", a última vez que uma música original e sua versão em português tinham chegado ao mesmo tempo no top 50 brasileiro havia sido há mais de 30 anos.

"Mordida de Amor" sucesso do Yahoo, grupo de pop rock, terminou 1988 no oitavo lugar da parada anual das rádios. No 27º posto, estava lá a balada glam metal "Love Bites", do Def Leppard.

"No Brasil, as versões sofrem de algumas pessoas e parte da crítica certo preconceito como se fossem algo mais fácil de criar. Até parece que é simples pegar um hit e fazer uma letra em cima e tudo vai soar bem. Não é assim. Tem uma arte, uma criação também", garante Marcelão.

O baterista lembra que o Yahoo, ainda na ativa, sempre buscou manter o sentido da letra original. Foi assim com "Anjo", versão da "Angel" do Aerosmith. "Mas existem versionistas muito talentosos, como Nelson Motta, que trabalham mais a sonoridade das palavras, mas com outro sentido."

No caso de "Mordida de amor", a banda aproveitou uma viagem para Nova York, no fim de 1987, para conseguir a autorização pessoalmente do Def Leppard. "Encontramos o guitarrista e foi mais fácil. Rolou uma empatia, porque a gente já tinha a versão pronta."

'Sempre estar lá, e ver ele voltar'

A banda Nenhum de Nós com Thedy Corrêa no centro — Foto: Divulgação

O cantor e compositor Thedy Corrêa costumava ouvir que ele e seus parceiros do Nenhum de Nós tinham "assassinado" a música "Starman", de Bowie (1947-2016).

"O que mais ouvi era gente que replicava opinião de parte da imprensa. Quando a gente pediu que explicassem, diziam que tínhamos errado o português, não tinham ouvido falar de licença poética", recorda. "Astronauta de Mármore" tem o refrão "Sempre estar lá, ir ver ele e voltar".

"Alguns falavam que eram fãs de Bowie. Mas eu perguntava de qual disco dele era 'Starman' e não sabiam qual. Outras bandas ficaram falando mal da gente, a galera do Titãs... O Renato Russo falou mal, mas depois me explicou que na verdade todo mundo estava com inveja."

Quando Bowie veio tocar no Brasil, em 1990, o cantor inglês anunciou "Starman" dizendo "vou tocar uma música que vocês cantam em português". "Ele deu uma benção ao fazer essa referência", diz Thedy. "Muita gente vem nos agradecer por terem descoberto Bowie com esta versão. Eu me sinto feliz por isso".

Hoje, ele consegue ver com mais distanciamento toda a polêmica com a versão. "A banda era muito nova, no segundo disco. E nos foi proposto fazer uma homenagem ao nosso ídolo. Fizemos com referências que achávamos bacanas, na nossa maturidade artística da época."

A versão do Nenhum de Nós lançada em 1989 tinha citações a letras de outras músicas de Bowie como "Ashes to ashes", de 1980. Dela, tiraram o verso "quero um machado para quebrar o gelo".

'É tanto, é tanto, se ao menos você soubesse'

Chico Amaral e Samuel Rosa, do Skank — Foto: Divulgação/centroculturalminastc

"Tanto (I Want You)", versão da música de Bob Dylan, foi criada por Chico Amaral em 1985. "Eu usei tanto por causa da sonoridade, para não cair na coisa de 'te quero', queria evitar isso", recorda. A letra foi escrita bem antes de passar a fazer parte da banda de apoio do Skank, como saxofonista, no começo dos anos 90.

Após ceder essa música à banda mineira, Chico se tornou o letrista mais recorrente do Skank. São dele letras de sucessos como "Vou deixar", "Pacato Cidadão", "Garota Nacional" e "Três Lados".

Ele conta que fechou um acordo para ganhar entre 2% e 5% dos direitos. A aprovação da versão foi parte de "uma novela cruel".

"No primeiro momento, o escritório do Dylan não autorizou. No final, como o Dylan estava na mesma gravadora do Skank, na Sony, os caras daqui se entenderam com os caras de lá", lembra Chico.

Ele diz ter até mais orgulho de outra versão, só que do inglês para o espanhol. "Wrapped Around Your Finger" (1983) virou "Estare Prendido En Tus Dedos", feita para o disco tributo ao Police, "Outlandos D'Americas", de 1998.

"Eu consegui manter quase tudo da música em inglês, ficou quase literal. Essa letra me disseram que o escritório do Sting elogiou, falando que ficou boa. Tinha um final da letra que fala alabastro pra rimar com maestro. Deu muito certo", recorda, rindo com simpatia.

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