Os 50 anos de Flicts

Como o primeiro livro infantil de Ziraldo se tornou um clássico até na Lua!

Felipe Branco Cruz Rafael Roncato/UOL

"Flicts", um dos marcos da literatura infantil no Brasil, completará 50 anos em 18 de agosto cheio de história para contar. O livro, escrito em dois dias por Ziraldo, mostra a cor Flicts (de um tom terroso bege), que se sente excluída por não ser tão forte quanto o vermelho, por não ter a imensidão do amarelo e nem a paz do azul.

O livro foi escrito no ano em que o homem pisou na Lua e Ziraldo sempre foi apaixonado pelos astros, planetas, estrelas e astronautas. A conquista do espaço foi a deixa para o artista escrever o final de seu livro. Flicts, que não tinha lugar na Terra, descobre ser a cor da Lua. E para não restar dúvidas disso, Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na Lua, confirmou a informação, autografando o livro com a frase: "A Lua é Flicts".

Ziraldo, no entanto, não deverá participar pessoalmente das comemorações do cinquentenário do livro. O cartunista afastou-se da vida pública após sofrer no final do ano passado três AVCs (Acidente Vascular Cerebral). Sua filha, a cineasta Daniela Thomas, tranquilizou os fãs e disse que ele está bem de saúde, porém com problemas em se lembrar de fatos recentes. "Ele se lembra de tudo dos anos passados, mas esquece das coisas que aconteceram nos últimos meses", contou.

Atualmente, tudo que diz respeito ao artista está sendo tocado por Daniela e por sua prima, Adriana Lins, que juntas organizaram duas exposições sobre Ziraldo, ambas em São Paulo. Uma delas fica na Casa Melhoramentos, na Vila Romana, que vai até o dia 29 de junho. A outra está no Sesc Interlagos e vai até 4 de agosto. A editora Melhoramentos planeja também lançar uma nova edição comemorativa dos 50 anos.

Para Daniela, foi com esse livro que seu pai descobriu que poderia ser um escritor infantil. Até então, Ziraldo era um respeitado cartunista, mas não era considerado um escritor. De "Flicts" surgiu outro grande sucesso do autor, "O Menino Maluquinho", que seria lançado mais de dez anos depois, em 1980, até hoje imbatível em vendas.

Rafael Roncato/UOL
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Divulgação

Como "Flicts" surgiu?

Em 1969, Ziraldo queria lançar uma coletânea com os cartuns de seu personagem "Jeremias, o Bom" e procurou o editor Fernando de Castro Ferro. O editor, no entanto, tinha outra ideia, e queria um livro infantil.

"Ele perguntou para o meu pai se ele tinha um livro infantil pronto. Meu pai respondeu que sim, mas não tinha nada. Então, ele voltou para casa desesperado para escrever um livro porque se comprometeu a entregá-lo dois dias depois", disse Daniela.

Criar tantas ilustrações em tão pouco tempo seria uma tarefa impossível e foi por esse motivo que ele optou por usar cores como personagens. Deu certo e Fernando achou a ideia de não usar ilustrações uma inovação revolucionária, já que este seria também o primeiro livro a ser publicado totalmente a cores no país.

Daniela acompanhou de perto a criação e o lançamento do livro, inclusive participando de tardes de autógrafo ao lado do pai. "Mamãe conta que meu papai passou o final de semana recortando revistas e cartolinas coloridas para fazer o rascunho do livro", lembrou Daniela

O nome Flicts, por sua vez, foi escolhido a partir de uma interjeição da tirinha "The Supermãe", publicada por Ziraldo no Jornal do Brasil. A palavra foi escolhida porque o cartunista queria uma palavra que pudesse ter a mesma sonoridade em diferentes línguas.

"O livro fala de redenção. É poético. É uma maneira diferente de contar a história do patinho feio. É a pessoa que sofreu bullying dando a volta por cima", disse Daniela. E a redenção da cor Flicts aconteceu com a chegada do homem à Lua no dia 20 de julho de 1969.

Daniela Thomas fala sobre "Flicts"

Reprodução

"Flicts" na Lua

Em outubro, três meses depois do homem pisar na Lua pela primeira vez, "Flicts" já era um sucesso editorial no Brasil, com sete mil exemplares vendidos. Foi, então, que o astronauta Neil Armstrong, como parte de um esforço de propaganda americana, veio para o Brasil.

No país, ele visitou diversas cidades, encontrou com o presidente, com governadores, diplomatas e desfilou em carro aberto. E conheceu o Ziraldo e Daniela Thomas, que tinha apenas 10 anos.

Esse improvável encontro foi organizado pelo chanceler Magalhães Pinto, que era mineiro como Ziraldo, e queria apresentar ao astronauta uma das personalidades mais importantes do seu estado natal. "O chanceler pediu para meu pai traduzir o livro para inglês e a editora imprimiu uma cópia às pressas para entregar para o astronauta", lembra Daniela.

Quando Armstrong chegou ao Rio de Janeiro, Ziraldo foi convidado a conhecê-lo e a entregar uma cópia do livro. O encontro ocorreu no Copacabana Palace e o escritor fez questão de levar a filha.

"Me lembro da excitação do meu pai. Ele sempre foi apaixonado por tudo que vem do espaço. Morávamos perto do hotel e fomos caminhando. Chegando lá, me lembro de Armstrong lendo o livro. Ele leu de verdade, estava muito interessado. Depois, meu pai perguntou para ele se a cor da Lua era mesmo flicts e Armstrong disse que sim. Então, ele pediu para o Armstrong escrever isso no livro. O astronauta escreveu "A Lua é Flicts!". Desde então, esse autógrafo aparece em todas as edições", lembra Daniela.

"Me lembro de olhar para o astronauta e pensar: 'Mas ele é tão comum, não parece com uma pessoa que pousou na lua'", contou Daniela.

"Meu 'edipianismo' pelo meu pai só aumentou, né? Imagine, ele escreveu um livro dizendo qual é a cor da lua, que só ele sabia qual era, e depois vem um astronauta e confirma?".

No livro, Ziraldo "profetizou" e escreveu em forma de poema antes mesmo de Armstrong confirmar com seu autógrafo:

Mas ninguém sabe a verdade (a não ser os astronautas) que de perto, de pertinho, a Lua é Flicts.

O autógrafo de Neil Armstrong

Arte/UOL Arte/UOL

O reconhecimento de Drummond

Daniela lembra que o pai, além de cartunista, sempre quis ser reconhecido também como um grande escritor.

"No início dos anos 2000, meu pai tentou entrar para Academia Brasileira de Letras. Ele não foi escolhido e isso foi uma frustração muito grande. Até hoje ele lamenta", contou. "'Flicts', para mim, é quase um livro de poesias", diz Daniela.

Mas, naquele ano de 1969, Ziraldo recebeu o reconhecimento de um de seus maiores ídolos, o escritor Carlos Drummond de Andrade, que escreveu uma crítica no jornal elogiando "Flicts".

Drummond escreveu:

O conto contado por Ziraldo só merece um adjetivo, infelizmente desmoralizado: 'maravilhoso'. Não há outro, e sinto a pobreza do meu cartuchame verbal, para definir 'Flicts'. Mas exatamente nisso está uma das maravilhas de 'Flicts': não carece de definição. É.
Carlos Drummond de Andrade

"Depois dessa crítica, meu pai procurou o Carlos Drummond e eles ficaram amigos, trocaram várias cartas. Foi um momento muito feliz na vida dele", lembra Daniela.

Saúde do Ziraldo

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