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'Chernobyl': o que é verdade e o que é ficção na série da HBO

Saiba quais personagens realmente existiram e quais outros acontecimentos divergem da vida real na produção
'Chenobyl': minissérie em cinco episódios da HBO reconstitui com minúcia detalhes da vida na União Soviética dos anos 1980 Foto: Divulgação
'Chenobyl': minissérie em cinco episódios da HBO reconstitui com minúcia detalhes da vida na União Soviética dos anos 1980 Foto: Divulgação

RIO — Coprodução da HBO com o canal britânico Sky , "Chernobyl" já pode ser considerada uma das produções para TV mais impressionantes deste ano. Em cinco episódios, a minissérie dramatiza o desastre nuclear ocorrido em 1986 na União Soviética , recriando em detalhes a vida no extinto país comunista — apesar do sotaque britânico de todos os atores.

Mesmo com a recriação de época minuciosa, a produção, como era de se esperar, toma liberdades narrativas em relação aos acontecimentos reais. Para quem quiser se aprofundar no assunto, uma sugestão de leitura é o livro "Midnight in Chernobyl ", do jornalista Adam Higginbotham .

A própria minissérie ainda criou um podcast (em inglês), no qual o showrunner Craig Mazin conversa com o apresentador Peter Sagal sobre como cada episódio foi feito. Abaixo, listamos o que realmente aconteceu em Chernobyl e o que faz parte das liberdades tomadas pela série.

Quem foi Valery Legasov?

Valery Legasov (Jared Harris) era um dos cientistas mais renomados da União Soviética Foto: Divulgação
Valery Legasov (Jared Harris) era um dos cientistas mais renomados da União Soviética Foto: Divulgação

Conforme a série mostra logo no começo, o químico Valery Legasov , personagem de Jared Harris ,  tirou a própria vida em 1988, no aniversário de dois anos do desastre de Chernobyl. No dia seguinte, Legasov anunciaria as conclusões de sua investigação sobre o acidente.

Antes de se matar, o cientista gravou uma fita em que denunciava a pressão política que teria sofrido para deixar de fora de seu relatório informações fundamentais sobre acidentes anteriores e falhas de projeto do reator da usina. Em 1996, Legasov foi postumamente condecorado com o título de herói da nação russa.

Quem foi Ulana Khomyuk?

Ulana Khomyuk (Emily Watson) jamais existiu; ela representa vários cientistas que trabalharam para evitar que o desastre de Chernobyl fosse maior ainda Foto: Liam Daniel / Divulgação
Ulana Khomyuk (Emily Watson) jamais existiu; ela representa vários cientistas que trabalharam para evitar que o desastre de Chernobyl fosse maior ainda Foto: Liam Daniel / Divulgação

A cientista Ulana Khomyuk , interpretada por Emily Watson , jamais existiu. A personagem é uma amálgama de diversos pesquisadores que trabalharam para conter um desastre ainda maior após a explosão da usina. Embora não fosse incomum que mulheres ocupassem cargos importantes na União Soviética, não havia nenhuma representante feminina na alta cúpula que investigou o acidente.

"Os cientistas nucleares responsáveis pela investigação já estavam cientes dos defeitos do reator anos antes do acidente; dois especialistas em reatores vieram de Moscou 36 horas após a explosão e rapidamente apontaram a possível causa do desastre", afirmou ao site "Inverse" o jornalista Adam Higginbotham, autor de "Midnight in Chernobyl".

Ainda segundo ele, a investigação sobre o que levou à explosão começou quase que imediatamente em diversas frentes, e foi um esforço coordenado entre a KGB, agência de espionagem soviética, e o escritório do procurador do estado.

Quem foi Boris Scherbina?

Boris Scherbina (Stellan Skarsgard) em 'Chernobyl' Foto: Divulgação
Boris Scherbina (Stellan Skarsgard) em 'Chernobyl' Foto: Divulgação

O personagem interpretado por Stellan Skarsgard realmente existiu. Boris Scherbina era um político que servia como vice-preisdente no Conselho de Ministros da União Soviética na época do desastre. Ordenou e coordenou a evacuação de Pripiat e também da zona de exclusão de 30 km ao redor da usina. Morreu em Moscou, em 1990.

Em entrevista ao site "DigitalSpy" , Skarsgard revelou que, para viver o burocrata, usou ternos feitos especialmente para ele pelos figurinistas da série com tecido soviético. Desconfortável, a roupa o ajudou a se sentir na pele de Scherbina.

"Nosso figurinista encontrou tecidos da era comunista que não eram muito bons, eram bem duros e cheiravam estranho. Disso, foram feitas as minhas roupas. Talvez não fosse um detalhe necessário, mas certamente acrescentou algo", contou.

Quem foi Anatoli Diatlov?

O engenheiro Anatoli Diatlov (Paul Ritter) em 'Chernobyl' Foto: Divulgação
O engenheiro Anatoli Diatlov (Paul Ritter) em 'Chernobyl' Foto: Divulgação

O engenheiro supervisor do teste que teve como consequência o desatre de Chernobyl é interpretado na série por Paul Ritter . Na vida real, Anatoli Diatlov foi julgado e condenado a dez anos de prisão por "manipulação criminosa de instalações potencialmente explosivas". Ficou preso cinco anos. Quando saiu da cadeia, escreveu um livro relatando que uma falha de projeto, e não humana, teria sido a causa primária do acidente. Morreu de complicações cardíacas, em 1995.

Quem foi Vasily Ignatenko?

O bombeiro Vasily Ignatenko (Adam Nagaitis) realmente existiu e foi um dos primeiros a chegar ao desastre Foto: Divulgação
O bombeiro Vasily Ignatenko (Adam Nagaitis) realmente existiu e foi um dos primeiros a chegar ao desastre Foto: Divulgação

O bombeiro que responde ao primeiro chamado realmente existiu. Vasily Ignatenko , o personagem de Adam Nagaitis , foi um dos primeiros a chegar à usina para combater o fogo. Recebeu uma dose fatal de radiação e morreu duas semanas depois, num hospital em Moscou.

Quem é Lyudmilla Ignatenko?

Lyudmilla Ignatenko (Jessie Buckley na série): a mulher do bombeiro Vasily Ignatenko sobreviveu ao desastre, mesmo se expondo à radiação Foto: Divulgação
Lyudmilla Ignatenko (Jessie Buckley na série): a mulher do bombeiro Vasily Ignatenko sobreviveu ao desastre, mesmo se expondo à radiação Foto: Divulgação

Interpretada por Jessie Buckley , a mulher do bombeiro Vasily, Lyudmilla também é uma personagem real. Lyudmilla Ignatenko chegou a compartilhar sua experiência no livro "Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear" (Companhia das Letras), da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Alexievich . Leia um fragmento do depoimento concedido à escritora:

"Estávamos casados havia pouco tempo. Ainda andávamos na rua de mãos dadas, mesmo quando entrávamos nas lojas. Sempre juntos. Eu dizia a ele "eu te amo". Mas ainda não sabia o quanto o amava. Nem imaginava… Vivíamos numa residência da unidade dos bombeiros, onde ele servia. No segundo andar. Ali viviam também três famílias jovens, e a cozinha era comunal. Embaixo, no primeiro andar, guardavam os carros, os carros vermelhos do corpo de bombeiros. Esse era o trabalho dele. Eu sempre sabia onde ele estava e o que se passava com ele. No meio da noite, ouvi um barulho. Gritos. Olhei pela janela. Ele me viu: "Feche a persiana e vá se deitar. Há um incêndio na central. Volto logo".

Assim conforme mostrado na série, Lyudmilla estava grávida na época do acidente. No livro de Svetlana, ela conta que pagou propina à recepcionista para poder entrar no hospital onde Vasily estava internado e escondeu dos médicos que estava esperando um bebê para poder visitar o marido, dois detalhes também mantidos na TV.

Quem foi Nikolai Fomin?

Engenheiro chefe da usina, Nikolai Fomin , vivido na série por Adrian Rawlins , foi o responsável por ordenar que Anatoly Sitnikov fosse até o telhado da usina verificar o estado do reator, mesmo sabendo que isso poderia condenar o funcionário à morte (e, de fato, a ordem fez com que Sitnikov recebecesse uma dose de exposição fatal à radiação). Como consequência de suas decisões, Fomin foi expulso do partido comunista e condenado a dez anos de prisão. Porém, um colapso nervoso fez com que ele fosse solto.

Quem foi Viktor Bryukhanov?

Interpretado por Con O'Neill , o diretor da usina, Viktor Bryukhanov , assim como Fomin, também resistiu em aceitar que o reator havia sido destruído, mesmo após Sitnikov ir ao telhado do prédio para constatar o fato. Foi expulso do partido comunista e condenado a dez anos por violar as regras de segurança e cinco por abuso de poder. Mas foi liberado após cinco anos de prisão.

A radiação chegou mesmo na Suécia?

Sim. Foi uma usina sueca que revelou ao mundo o acidente ocorrido em Chernobyl — enquanto as autoridades soviéticas ainda tentavam encobrir o desastre. O alarme soou quando um dos empregados da usina de Forsmark, a uma hora de Estocolmo (e 1.100 km de Chernobil), chegou para trabalhar.

Partículas radioativas foram encontradas na relva ao redor da usina e logo reconhecidas como material usado em usinas soviéticas. O vento soprando do sudeste e a chuva que caiu no dia contribuíram para que os materiais radioativos se depositassem no local. Quando a Suécia deu o alerta sobre a detecção, Moscou admitiu o desastre, dois dias depois de ocorrido.

Os mineiros trabalharam sem roupa?

Os mineiros convocados para atuar na contenção do desastre de Chernobyl Foto: Divulgação
Os mineiros convocados para atuar na contenção do desastre de Chernobyl Foto: Divulgação

"Mineiros, engenheiros e trabalhadores do metrô foram de fato recrutados para escavar o reator, como parte de uma série de esforços para controlar o colapso, mas talvez não exatamente nas circunstâncias descritas", disse Adam Higginbotham, autor de "Midnight in Chernobyl", em entrevista ao "Inverse". Higginbothan afirma ainda que há uma abundância de filmes e imagens documentais que sugerem que os mineiros trabalharam vestidos, e não nus.

O que aconteceu com a cidade de Pripiat?

Uma roda gigante abandonada em Pripiat, em registro de fevereiro de 2011, ano em que a tragédia completou 25 anos Foto: GLEB GARANICH / Reuters
Uma roda gigante abandonada em Pripiat, em registro de fevereiro de 2011, ano em que a tragédia completou 25 anos Foto: GLEB GARANICH / Reuters

A  cidade de Pripiat foi fundada, às margens do rio de mesmo nome, em 4 de fevereiro de 1970, para abrigar as famílias dos trabalhadores da usina de Chernobyl. Tinha quase 50 mil habitantes em 1986. Na tarde de 27 de abril daquele ano, todos foram evacuados. Hoje, Pripiat é uma cidade fantasma, dentro da zona de exclusão na Ucrânia. O sucesso de uma minissérie. porém, fez aumentar o número de turistas que querem ver a usina e a cidade abandonada fantasmagórica em sua vizinhança por si mesmos .

Por que tomar pastilhas de iodo?

O iodo é absorvido na tireóide com facilidade — sendo normal ou radioativo. Entre os elementos dispersos pela explosão de Chernobyl, estava o iodo-131, radioativo. Absorvido na tireóide, ele poderia causar câncer. A melhor forma de se proteger é tomar pastilhas de iodo normal, "ocupando" assim a tireóide, sem deixar espaço para o iodo radioativo.

Um helicóptero caiu por se aproximar da usina após a explosão?

Não exatamente. De fato, um helicóptero caiu durante as operações para conter o desastre de Chernobyl — e é mesmo possível encontrar filmagens do acidente no YouTube. Porém, a produção mudou muita coisa na hora de dramatizar o acontecimento. Conforme é possível ver nos vídeos da época, a queda foi causada por uma colisão com um guindaste, e não pelo fato do piloto ter se aproximado demais do núcleo do reator da usina, conforme é retratado na série. Além disso, o acidente real ocorreu semanas após a explosão, e não nas horas seguintes.

Como foi feita a limpeza da usina após o acidente?

O telhado da usina após a explosao do quarto reator de Chernobyl, em imagem de 1986 Foto: Igor Kostin / REUTERS
O telhado da usina após a explosao do quarto reator de Chernobyl, em imagem de 1986 Foto: Igor Kostin / REUTERS

Tema do quarto episódio, a limpeza da usina após a explosão foi outro momento dramático em torno da tragédia. Em 1990, o oficial que coordenou a operação, Yuri Semiolenko , revelou detalhes do que aconteceu em uma conferência: os soviéticos usaram 60 robôs no esforço, entre máquinas feitas no país (inclusive as desenvolvidas para missões lunares), no Japão e na Alemanha Ocidental (o robô Joker, que aparece na série, ainda está abandonado na região ).

Porém, como as máquinas não aguentaram a radiação, os oficiais recorreram ao trabalho manual. Apenas 10% do telhado foi limpo por robôs. Chamados assustadoramente de "biorrobôs" na série, 5 mil operários trabalharam na limpeza da usina. Desses, 31 morreram em Chernobyl, e 237 tiveram casos confirmados de exposição aguda à radiação.

O sacrifício dos trabalhadores não teria sido necessário se Estados Unidos e União Soviética tivessem colaborado: cientistas americanos haviam desenvolvido protótipos de robôs para limpar a usina nuclear Three Mile Island,na Pensilvânia, onde um reator parcialmente derreteu em 1979.

"Os oficiais que compraram os robôs não entendiam nossa situação. Nós teríamos aceitado de todo o coração robôs americanos", afirmou Semiolenko em 1990, de acordo com reportagem da revista " The Scientist ".

Por que Legasov se matou?

No final do quarto episódio de "Chernobyl", vemos que Legasov sabia das falhas do reator RBMK, que, junto com erro humano, levaram ao desastre. Para o jornalista Adam Higginbotham, no entanto, não se pode afirmar que este tenha sido o motivo do suicídio do cientista.

"Legasov tinha tentado se matar antes em 1987, com uma overdose de remédios para dormir. Mas em nenhuma das ocasiões ele deixou uma carta. (...) As razões pelas quais o verdadeiro Legasvo tirou sua vida são complicadas e não se encaixam em uma narrativa simples", afirmou o jornalista em entrevista ao " Inverse ".

Segundo Higginbotham, em 1988, quando Legasov morreu, a saúde dele já estava abalada pela exposição à radiação, e sua carreira estava em ruínas.

"Ele não chegou nem a ser reconhecido publicamente por seu trabalho em Chernobyl, pelo menos em parte porque Gorbatchev desenvolveu, logo no começo, uma antipatia pessoal por ele".