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Bolsonaro é denunciado à ONU após exonerar peritos e acabar com salários de órgão que combate tortura

Entidade Justiça Global entregou queixa contra o presidente em Genebra; Humans Right Watch vê medida do governo com preocupação e acredita que ela esvazia atividade do mecanismo ligado ao ministério de Damares Alves
O presidente Jair Bolsonaro foi denunciado à ONU pela segunda vez desde o início do mandato Foto: Jorge William / Agência O Globo
O presidente Jair Bolsonaro foi denunciado à ONU pela segunda vez desde o início do mandato Foto: Jorge William / Agência O Globo

RIO - O presidente Jair Bolsonaro foi denunciado à Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira, em Genebra, na Suíça, por ativistas brasileiros ligados à entidade Justiça Global. O motivo da queixa é um decreto presidencial publicado mais cedo no Diário Oficial da União, com determinação para que todos os sete peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura sejam exonerados. O texto também decide acabar com a remuneração para esses cargos, que passarão a ser ocupados por voluntários aprovados pelo próprio presidente.

O órgão em questão é ligado ao Ministério Público (MP) e ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (da ministra Damares Alves), e tem como função promover fiscalizações e produzir relatórios sobre violações de direitos humanos e casos de tortura em espaços de privação de liberdade (como penitenciárias, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas). A denúncia sobre a exoneração e a mudança nos salários foi enviada a Nils Melzer, relator especial da ONU para assuntos ligados à tortura e tratamentos e punições degradantes.

De acordo com a Justiça Global, a medida do presidente impossibilita que o órgão opere e representa "um sério ataque às políticas de prevenção e combate à tortura e à proteção dos direitos humanos no Brasil". A entidade lembra, no texto, que o Brasil é obrigado a manter o mecanismo em atividade em reconhecimento à Convenção da ONU Contra a Tortura, reconhecida anteriormente pelo país de maneira oficial.

A denúncia enviada a Nils Melzer afirma ainda que o decreto levou o órgão a existir "somente no papel", já que teria minado as suas capacidades operacionais. Assim como peritos destacaram mais cedo ao GLOBO, a Justiça Global pontua que o trabalho da equipe de fiscalização deve ser remunerado, uma vez que envolve dedicação integral e exclusiva. Para a entidade, essa é uma questão imprescindível para garantir autonomia e independência de investigações sobre violações de direitos humanos no Brasil.

País assumiu compromisso

Em nota divulgada nesta terça-feira, a Humans Right Watch, organização internacional que também atua a favor dos direitos humanos, defendeu que o Brasil se comprometeu em 2007 a criar e manter o Mecanismo em atividade. O texto aponta que ele desempenha "papel fundamental na exposição de casos graves de tortura" e produz "alertas sobre atividades de facções criminosas e risco de assassinatos em unidades".

Diante destas atribuições e do decreto presidencial, a Humans Right Watch afirma que "o governo de Bolsonaro atua contra os especialistas que documentam (as violações de direitos humanos) e denunciam".

A denúncia entregue pela Justiça Global faz referência direta aos alarmes sobre possíveis massacres em unidades prisionais. A queixa sugere que o trabalho do órgão tem sido essencial para as denúncias durante eventos críticos como o assassinato de 55 presos em prisões do Amazonas (AM) no fim de maio.

Entre as atuações mais expressivas dos peritos nos últimos anos, estão um relatório de 2016 que sugeria a possibilidade da eclosão de um massacre no sistema penitenciário de Manaus (AM), como de fato aconteceu no ano seguinte (57 foram mortos na ocasião). De 2017 em diante, o mecanismo se dedicou a observar a situação no estado e cobrar o cumprimento das recomendações que havia feito anteriormente. O principal foco no início deste ano era a situação das cadeias do Ceará.

Segunda denúncia

É a segunda vez que ativistas brasileiros levam à ONU uma denúncia sobre a conduta de Bolsonaro nos primeiros seis meses de governo. Em março, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto Vladimir Herzog (IVH) denunciaram o presidente após a determinação dele para que os quartéis das Forças Armadas comemorassem o aniversário de 55 anos do golpe militar de 1964, o que depois o presidente chamou de “relembrar” .

Na ocasião, o relator especial da ONU para a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação de Garantias de Não-Reincidência, Fabián Salvioli, emitiu um comunicado em que pediu a Bolsonaro que reconsiderasse as recomendações lidas pelo seu porta-voz para comemorar a data. O governo manteve o apoio a atos em memória do golpe e se limitou a enviar um telegrama à ONU, assegurando que não teria havido golpe em 1964 e que os anos que se seguiram sob o comando dos militares teriam sido necessários para afastar uma "crescente ameaça do comunismo no Brasil".

Procuradoria quer que STF analise o caso

Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), a exoneração dos peritos é inconstitucional, viola a legislação nacional e rompe compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. A PFDC integra o Ministério Público Federal e enviou uma representação ainda nesta terça-feira à procuradora-geral da República, Raquel Dodge.

O texto sugere que uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) seja enviada para o Supremo Tribunal Federal analisar. O documento é assinado em conjunto com a Câmara do MPF de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional.

Para a PFDC, ao criar uma espécie de “trabalho voluntário”, a medida inviabiliza a prevenção e o combate à tortura – em contrariedade ao fundamento do Estado Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana.