Flip,

Réplica: Se insistir na surdez voluntária, a esquerda vai falar sozinha

Repórter da Folha de S. Paulo responde crítica de Paulo Roberto Pires publicada na Quatro Cinco Um

22jul2019

No sábado da Flip, publiquei na Folha de S.Paulo uma coluna defendendo que, se a esquerda quer realmente entender a sova que levou na última eleição, deveria começar a escutar mais o outro lado. A começar pelo próprio festival literário: conversei com três ex-curadores e outros entendidos do assunto, e todos quebraram a cabeça para resgatar convidados que, no sempre simplório sistema de etiquetação ideológica, pendessem para a direita. Apontaram um punhado.

Corrijam-me se eu estiver enganada, mas desconfio que o povo brasileiro já teve a esquerda em mais alta conta. Se ela quer virar o jogo, tem que sacar o que deu errado. E como vai destrinchar a cabeça do adversário se só ouve os que já pensam igual a ela? 

Seria como se tucanos, naquela polarização vintage que era PT vs. PSDB, buscassem compreender as derrotas consecutivas para os rivais num petit comité na casa de FHC em Higienópolis, Arminio Fraga discursando enquanto garçons completam taças semicheias de Château Lafite Rothschild (o que, pensando bem, não duvido nada que tenha acontecido). 

Achei que meu ponto estava claro. Dias atrás, Paulo Roberto Pires, que aliás foi meu professor naqueles anos de balbúrdia na UFRJ, quiçá o favorito, escreveu um artigo na Quatro Cinco Um mostrando que não.

Eu tinha reclamado, segundo ele, da ausência de autores à direita na Flip, “o que seria uma flagrante evidência da falta de espírito democrático da festa”. Aí o articulista sugere que, se meu raciocínio valesse, deveríamos, pelo bem da isonomia, dar palanque para um lobista das mineradoras ao pensar a tragédia de Mariana. Definitivamente não foi a minha tese. Nunca falei em tratar desiguais como iguais.

Das duas, uma. 

1. Paulo Pires cometeu um descarado pinoquismo intelectual. Ele é, afinal, mais do que qualificado para não cair nesse analfabetismo ideológico de só conseguir ler o que convém a seus interesses. Deu a entender que para cada Glenn Greenwald, um jornalista premiado que o conservador raiz detesta mais que sarau da FFLCH, eu proponho trazer um Olavo de Carvalho da vida. 

2. Paulo Pires não pescou o que eu quis dizer porque, aluna péssima que sempre fui, não construí bem minha argumentação, e a moral da história foi pra cucuia. (Foi mal, professor!)

A segunda hipótese, claramente, prevalece. Então vamos à segunda tentativa.

Nunca falei em “espírito democrático” ao dar a letra que a Flip, e as redomas progressistas em geral, talvez devam se abrir a vozes mais à direita. Até acho que uma diversidade de pensamentos faz bem. Afinal, se nossos ideais são resistentes o bastante, uma ideia adversa será como Biotônico Fontoura para eles. E se não forem, que bom que pudemos ter contato com alguém que nos fizesse ver isso.

Não vejo, no entanto, democracia possível se, de um lado, convocamos Grada Kilomba ou Aparecida Vilaça, e, de outro, temos um olavista proferindo “cu” em looping e toda espécie de anti-argumento para ganhar uma discussão no grito. 

Mas acho, sim, que ter um ponto de vista mais distante daquele que impera na Flip é estrategicamente importante para decifrar que porra é essa (perdoem meu francês) que está acontecendo no Brasil hoje. Decifrar, por exemplo, como algumas das lideranças mais reacionárias vieram de periferias, são negras e pardas, segmentos nos quais a esquerda costuma surfar. Ou costumava. 

Caso do deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), 25, que conheci numa área chamada de Iraque (tantos eram os escombros) numa favela paulistana. Sua casa. Filho de evangélicos beneficiados pelo Bolsa Família, Douglas virou o fundador do Direita SP, um dos grupos mais raivosos dessa seara, que até o bloco carnavalesco Porão do Dops criou. E, por favor, não me venham com uma explicação condescendente do tipo "tadinho, é manipulado pelo vil capital".

A esquerda não tem dado conta de desvendar fenômenos como esse, e credito essa dificuldade, em parte, ao fato de não falar a mesma língua dos conservadores. Ah, vale frisar: chamar alguém para o debate não é a mesma coisa que dizer “cara, você é foda”. Não é uma anuência, não é um joinha no Facebook. É exatamente o que a palavra propõe: debater. 

Lembrando que existe muita direita por aí da qual posso até discordar, mas que está apta a uma discussão saudável. E que tratar o espectro inteiro como extremista (lembra de quando todo tucano era fascista aos olhos da esquerda?) não é tão diferente assim de Bolsonaro generalizando universidades públicas como uma suruba sem fim a serviço do marxismo sexual — estudantes do mundo, fodei-vos! 

Paulo Pires, a certa altura, diz que a Barbie Fascista “fez forfait na Flip deste ano”. Seria um ser saudoso dos tempos em que o festival “ignorava o mundo exterior”, pois prefere separar política de literatura. Mas a Flip, essa brava guerreira, “chamou as coisas por seus nomes em 2019”. Sim, chamar as coisas pelos nomes é ótimo. Melhor ainda é quando suas palavras não ficam restritas à sua patota. 

Acontece que, no Brasil, Barbies Fascistas são uma minoria numérica, e taí o IBGE que não me deixa mentir. Se a bolha progressista continuar investindo do discurso de que a elite reaça elegeu Bolsonaro, e o povo nada teve a ver com isso, foi no máximo massa de manobra, então pode se preparar para sentar no banquinho de reservas, porque vai demorar a tomar as rédeas do país de novo. 

Curioso, aliás, foi ouvir o hino nacional, essa coqueluche patriótica engolida pela direita, duas vezes na Flip. O Teatro Oficina o executou na abertura da festa, uma versão ao som de João Gilberto e sua bossa nova elitizada. Dois dias depois, a turba que soltou rojões para atrapalhar a fala de Glenn Greenwald pôs o hino para tocar no batidão do funk.   

Não há problema em ter uma Flip posicionada, que transpire o #EleNão por todos os seus poros, tal qual um jornal que marque sua posição no editorial e nem por isso deixe de inserir visões plurais em seu recheio. 

Se insistir na surdez voluntária para outras posições, a esquerda vai ficar falando sozinha. Há uma direita no Brasil que também critica a corrosão dos valores democráticos, mas que pode analisá-lá sob outro ponto de vista, enriquecendo o debate. Nas eleições, progressistas falavam em virar voto. Onde foi parar essa propensão para o encontro?

A direita perdeu quatro eleições porque não soube ler o Brasil. A esquerda pode ser mais esperta do que isso. E, ó: não precisa pedir um RSVP pra matilha de predadores da democracia, não. Esses aí não querem conversa. E a gente, quer conversar com quem? Com quem pode apresentar visões que nos ajudem a enxergar demandas que não nos são visíveis e corrigir nossas falhas, digo eu. Num ponto eu e Paulo Pires concordamos: é a política, estúpido! 

Quem escreveu esse texto

Anna Virginia Balloussier

É jornalista. Lançou Talvez ela não precise de mim: Diários de uma mãe em quarentena (Todavia).