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Uma viagem ao garimpo na maior terra indígena do Brasil

Repórter conta os bastidores da incursão, por quatro dias, na terra dos ianomâmi, em Roraima, uma terra onde a lei que impera é a da extração clandestina do ouro
Garimpo ilegal de ouro na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Garimpo ilegal de ouro na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

O garimpo ilegal em terras indígenas explodiu no Brasil, mas pouco se sabia sobre a vida real nesses territórios, sobre o cotidiano nas comunidades. Não havia um rosto para o problema, mas apenas uma coleção de versões. Era preciso estar no local dos fatos, por mais distante que eles estivessem da capital federal, onde o discurso do presidente, Jair Bolsonaro , em defesa da mineração em terras indígenas ressoa cada vez mais alto.

Podcast ‘Ao Ponto’: A vida no garimpo ilegal dentro da maior terra indígena do Brasil

O repórter fotográfico Daniel Marenco e eu viajamos a Roraima para reportagens que não diziam respeito aos índios. Decidimos incluir na viagem uma investigação aprofundada sobre o garimpo ilegal na reserva ianomâmi, a maior terra indígena brasileira.

O contato com fontes militares com quem já conversava desde Brasília permitiu o início de uma apuração in loco. É o Exército que tenta controlar a entrada de garimpeiros ilegais na terra indígena. Os poucos militares ficam em postos de controle no início da subida dos dois rios apinhados de garimpeiros, o Mucajaí e o Uraricoera. São justamente os rios mais importantes para os ianomâmi.

Das conversas, surgiu o indicativo de uma fonte que estava fora do nosso radar. Essa pessoa sabia o caminho das pedras: ela mesma havia feito dinheiro com o ouro. Ela nos contou da criação recente de uma cooperativa que passou a reunir milhares de garimpeiros ilegais em Roraima, um estado que não tem mina legal em operação, mas que respira, em qualquer canto, a mística do ouro, proveniente principalmente dos ianomâmi.

Buscamos a cooperativa. Conversamos com dezenas de cooperados. Ali, já se percebia uma divisão clara no universo do garimpo: de um lado, garimpeiros pobres ou miseráveis, sem qualquer perspectiva de trabalho em Boa Vista, a capital que mais acolhe venezuelanos refugiados; de outro, donos de aviões e equipamentos de exploração do ouro ilegal, responsáveis por garantir a logística do garimpo e a retirada do ouro da terra indígena. Das conversas, surgiu a oportunidade de subir um dos dois rios, o Mucajaí, em uma canoa a motor. Comunicamos ao Exército, que nos autorizou, e embarcamos.

A viagem

A viagem durou quatro dias. A primeira subida pelo caudaloso rio, marcado por corredeiras que costumam virar e destruir embarcações, durou um dia inteiro. No caminho, nos deparamos com o garimpo ilegal, em alta escala de destruição e contaminação ambiental. As comunidades indígenas pareciam, ao mesmo tempo, acuadas e integradas ao garimpo – o que de fato ocorre, com diversos indígenas atuando como barqueiros para os garimpeiros. Nos acampamentos, encontramos os rostos que procurávamos: o de garimpeiros pobres dispostos à sobrevivência e à fortuna.

Era difícil compreender tamanha complexidade no meio da floresta amazônica. Mais que compreendê-la, em algum momento seria necessário explicá-la aos assinantes do GLOBO. E isso em meio a uma forte tensão a cada minuto da viagem. Nem todos os acampamentos aceitavam a presença de repórteres naquela terra sem lei (ou com uma lei própria, paralela ao regramento vigente). É comum a presença de garimpeiros armados.

Dormimos nos acampamentos dos garimpeiros. Registramos suas rotinas de trabalho. Conversamos somente com quem aceitava nossa presença. Descemos o rio no dia mais tenso da semana naquele lugar, com militares do Exército buscando cinco canoas que furaram o bloqueio na madrugada, depois do apagar dos refletores.

É enorme o impacto dos garimpos às comunidades – os índios estão contaminados por mercúrio e são diretamente afetados pelo negócio do ouro ilegal. É impressionante também o nível de marginalidade e exclusão dos garimpeiros mais pobres – estes homens e mulheres são explorados por quem detém aviões e maquinários, e extraem o ouro de uma maneira rústica, artesanal, sem chances na mineração industrial.

Ao sentar para escrever tudo que presenciei, só queria dar conta de traduzir a complexidade daquela realidade. Fugir da burocracia e dividir com os leitores a experiência de estar ali, no meio da Amazônia, com uma das questões mais complexas da nossa realidade.