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Independente de religião, o hospital de Irmã Dulce foi importante na época que saúde NÃO era um direito

O que a vida de Irmã Dulce ensina sobre História do Brasil: explosão demográfica e agonia econômica multiplicaram os miseráveis na Bahia no século XX.

O papa Francisco vai canonizar neste domingo a brasileira Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes (1914-1992), a Irmã Dulce, tornando-a oficialmente a primeira santa nascida no Brasil. É um fato imensamente comemorado pelos católicos, mas o legado de humanismo da freira nascida em Salvador deveria interessar a qualquer um que goste de História, mesmo que seja de outras religiões ou que não tenha fé alguma.

A vida de Irmã Dulce coincidiu com o período que o historiador britânico Eric Hobsbawm chamou de “Era dos Extremos”. Ela nasceu em 26 de maio de 1914, um mês antes de um obscuro estudante chamado Gavrilo Princip assassinar o arquiduque do Império Austro-Húngaro Francisco Ferdinando. O atentado terrorista em Sarajevo foi o bilhete de embarque da Europa rumo ao apocalipse da Primeira Guerra Mundial.

Ela morreu em 13 de março de 1992, poucos meses após o colapso definitivo da União Soviética, marcando o fim do terremoto político que rebaixou o “socialismo real” à mera condição de consequência acidental e passageira da História.

Os reflexos dos acontecimentos históricos moldaram as circunstâncias que Irmã Dulce encontrou na Bahia. Na Salvador em que ela viveu, a urgência da pobreza sempre fez da caridade um bem de primeira necessidade. A antiga capital da colônia reagiu com dificuldades aos desafios impostos pela crise econômica dos anos 1930 e se industrializou muito tardiamente em relação a outras cidades brasileiras.

Ao lado da agonia econômica, a cidade houve explosão demográfica. Entre 1920, quando a freira tinha seis anos, e 1991, ano anterior à sua morte, a população da cidade foi multiplicada por 7, saltando de 280 mil habitantes para 2,1 milhões neste período. Sucessivas secas no interior da Bahia deportaram para a capital o sertanejo pobre.

Essa nova massa migratória, somada ao enorme contingente de descendentes de ex-escravos que já vivia na penúria, incorporou à paisagem da cidade favelas cada vez maiores. Alagados, famosa fora da Bahia por causa da música dos Paralamas do Sucesso, foi o exemplo mais vistoso deste fenômeno. Salvador é a metrópole com maior parcela da população de afrodescendentes fora do continente africano.

Em 1949, mesmo ano que as primeiras famílias começaram a invadir terras da Marinha e o próprio leito do mar para fincar palafitas e barracos nos Alagados, Irmã Dulce fundou o embrião do que seria um dos maiores hospitais do país. Depois de ter passado 10 anos atendendo pacientes na rua ou até invadir casas e imóveis públicos, a freira limpou o antigo galinheiro ao lado do convento em que ela vivia, instalou colchões e criou um ambulatório improvisado. Colocou lá 70 pessoas.

Podia ser temerário, mas isso era muito mais do que aquelas pessoas conseguiam obter do poder público. Hoje em dia é comum pensar que saúde é um direito universal, mas nem sempre isso foi assim. Antes da Constituição de 1988 e da criação do Sistema Único de Saúde, pessoas sem carteira assinada não tinham acesso à rede hospitalar – os antigos “hospitais do INPS”.

Com ajuda de empresários e políticos e doações espontâneas de pessoas simples da Bahia, o antigo galinheiro foi ampliado e inaugurado como hospital com 150 leitos em 1960. O estabelecimento era o único de Salvador que não fechava a porta para doentes que não podiam arcar com os custos de um tratamento.

Hospital de Guerra

A expansão do Hospital Santo Antônio ocorreu em progressão geométrica ao longo das décadas: 70 em 1949, 150 em 1960, 300 em 1970, 800 em 1983.

No Brasil do Milagre Econômico, a Salvador de Irmã Dulce tornava realista a frase atribuída ao general Medici (1969-1974) de que a economia ia bem e o povo, mal. A industrialização começou a ter impulso com a inauguração do Centro Industrial de Aratu e o início do processamento da nafta da refinaria de Mataripe, que daria origem ao polo petroquímico de Camaçari (apenas inaugurado em 1978). Os indicadores sociais, por outro lado, capengavam.

Puxada pela diarréia, a mortalidade infantil, teve um salto de quase 50% entre 1968 e 1971, passando de 66,7 para 98 mortos para cada mil nascidos vivos na capital baiana (7). Apesar da ampliação da capacidade, o Santo Antônio continuava tão lotado como antes. Irmã Dulce acomodava doentes em corredores, em bancos do jardim e até na sala destinada ao necrotério. “Uma noite, quando cheguei ao hospital, entrei num pavilhão de trezentos metros quadrados onde não era possível andar, porque o chão estava repleto de doentes”, contou Manoel Ventin Orge, dono de um depósito de materiais de construção onde Irmã Dulce costumava comprar, em um depoimento que integra os autos do processo canônico da freira que está no Vaticano.

Entre 1964 e 1974, foram realizadas cerca de quatrocentas cirurgias no Santo Antônio. A média de uma cirurgia a cada nove dias é bastante enganosa porque evoca uma ideia de certa tranquilidade e planejamento no período entre cada intervenção. Em um depoimento que integra o dossiê da beatificação de Irmã Dulce, o cirurgião Luiz Alberto von Sohsten disse que muitas operações eram feitas de maneira irregular do ponto de vista técnico e legal. Às vezes, enquanto von Sohsten estava operando um paciente com um quadro bastante grave, cirurgias mais simples eram executadas por estudantes do sexto ano de medicina.

“Todos os colegas conheciam bem as condições em que a gente trabalhava. Era mesmo como um hospital de guerra, mas curiosamente o número de infecções era muito baixo”, disse o médico, também nos autos do processo do Vaticano.

Se a superlotação conferia uma aparência anárquica ao hospital, a limpeza era uma obsessão de Irmã Dulce. Voluntários e empregados do Santo Antônio dizem que a religiosa ralhava se encontrasse traço de sujeira nos pavilhões, corredores ou banheiros durante suas rondas para inspecionar os pacientes. Não se tratava de uma descompostura propriamente dita, mas Irmã Dulce deixava muito clara a reprovação com sua voz baixinha e meio balbuciante (11). Não raramente ela podia mesmo ser vista com uma vassoura, rodo e balde com água, esfregando o chão do hospital quando não o encontrava suficientemente limpo.

O médico comunista e os generais

Dizendo-se apolítica, Irmã Dulce sempre interpretou com competência a direção dos ventos políticos e cativou poderosos para ter acesso aos cofres públicos.

Foi Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) o primeiro presidente a financiá-la diretamente. Seus laços com o poder público se fortaleceram enquanto os generais se sucediam no Planalto e Antonio Carlos Magalhães estabelecia o seu império político na Bahia.

ACM e Irmã Dulce, aliás, se conheciam desde sempre. Os pais dos dois eram vizinhos na rua Independência, no centro de Salvador, nos anos 1920, e lecionavam na mesma universidade – um indicativo de quão diminuta é a elite baiana. Treze anos mais velha, Irmã Dulce só reencontrou Antonio Carlos, como os baianos o chamam até hoje, na vida pública no final dos anos 1960, quando ele era prefeito biônico (escolhido sem voto direto) de Salvador. Depois nos dois governos dele na Bahia, ACM foi importante para obter um terreno para a ampliação do hospital na década de 1980 e para destinar verbas para a obra da freira, mas ela nunca pediu votos ou subiu num palanque do governador.

Ou seja, aí habilidade pura e simples da freira: extraiu tudo o que pôde de ACM para o hospital sem jamais ter passado o recibo de carlista.

Enquanto se dava bem com autoridades e gente que mandava muito na ditadura, Irmã Dulce teve como principal colaborador o médico Gérson Mascarenhas, de ligações históricas com o Partido Comunista. Ele dirigiu o hospital entre 1964 e 1972, tendo sido preso duas vezes neste período. A primeira logo após o golpe que quebrou a ordem constitucional e a segunda, à guisa de “revisão, depois do AI-5, quando o país embicou para o momento mais sombrio da ditadura.

Esta ambiguidade de lidar bem com militares e ter como importante esteio um comunista é uma das marcas do pragmatismo político da vida pública de Irmã Dulce.

Ao decidir canonizá-la, a Igreja católica homenageia o heroísmo social que os baianos conheciam desde sempre.

Se o Vaticano reconheceu dois milagres atribuídos a ela, na Bahia a fama de santidade desta mulher de 1,48 metro de altura e saúde frágil, adquirida em vida, não estava ligada a feitos sobrenaturais, mas ao fato de ela ter deixado penetrar no próprio coração a angústia dos desvalidos.

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As informações desta reportagem foram colhidas durante a pesquisa de 8 anos que resultou no livro “Irmã Dulce, a Santa dos Pobres”, do qual sou o autor, publicado em setembro pela Editora Planeta.

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