Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Pequenas coisas

O demônio marrom da barragem varreu tudo, menos a casinha e sebe da frente

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Área atingida pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho - Eduardo Anizelli-26.jan.19/Folhapress

Morava ali havia 33 anos. Era uma chácara pequena, casinha jeitosa, e as plantas foram crescendo à volta.

Bonita era a sebe de flores logo na entrada, crescida assim sem cuidado, mistura de rosas e temperos e capins que sacudiam aos ventos, brandos só para criar aquela belezura kitsch que eles chamavam de “meu sonho”.

As crianças aproveitaram muito, mas foram os netos que pegaram a mangueira já crescida, dependurando cachos de manguinhas rosadas. Eram  daquelas bem pequenas de gosto, cheiro, doçura maior do que a de todas as outras frutas. E, para vergonha dele, nascera sozinha. Um dia olhou e já estava crescida e disfarçada, alguém jogara lá o caroço.

A horta já foi uma coisa deles, cuidadosa. Tinham coleção do Globo Rural desde o tempo que a revista trazia nas últimas páginas lugares para comprar sementes e ensinava a plantar couve, rabanetes, salsinha e cebolinha.  A mulher e ele ocupavam os dias naquele trabalho, que era quase uma brincadeira. Tinham um pequeno bananal que não exigia cuidados. O pessoal que comprava vinha pegar no pé, e o seu Garcides limpava mesmo quando não estavam lá. Dinheiro não dava, só banana, e bastante.

O demônio marrom da barragem varreu tudo, menos a casinha e sebe da frente. Tudo tão distante do acidente, sete quilômetros. Em pé só a casa nua, como quando tinha sido construída, desenfeitada, mas salva.

Era um milagre, um milagre que nenhum deles morrera estatelado no lodo, e se arrepiava todo ao pensar nos netos. O que seria deles sem os netos que amavam cada frutinha nova, e que engoliam as antigas com o suco sujando a boca.

Olhou para trás dos trambolhos, dos galhos atrás da cozinha e até chorou. Chorou grosso, choro de homem velho, as lágrimas passando pelas rugas.

A mulher nem parecia comovida, agarrara-se num cachecol de tricô e tricotava sem parar, murmurando rezas com a boca entreaberta. O trabalho que fazia se parecia com o desastre, não serviria para nada e se enrolava, inútil pelo chão da varanda.

Ela que gostava de cozinhar, não tinha como, é certo, mas o fogão estava lá, as panelas de ferro muito bem curtidas, as colheres de pau que o artista da cidade moldara para eles há muito tempo dependuradas na parede.

Não conseguia entender. Quase todos mortos, e o socador de alho lá firme, como se nada houvesse acontecido. Balançou a cabeça para sacudir esse tipo bobo de pensamento.

O riacho translúcido que corria tão limpo e onde as crianças brincavam o dia inteiro também se transformara em lodo. Parado, escuro, nem o rabinho de um lambari brincalhão, nem um bigode de bagre triste, as pedrinhas do fundo, os gritos das crianças cascalhando. As coisas nunca mais seriam as mesmas, nunca. Não havia mais tempo, pelo menos para ele.

Ouviu o barulho do helicóptero, bonito, parecia uma libélula colorida zoando, zoando. Tudo mudara, sentia saudade dos netos, mas mais ainda da água espelhada, cheirosa, água de Deus. Voltou as costas para o riozinho com o ingá ainda pendurado e foi andando em direção à mulher e seu cachecol que parecia a lama se desenrolando em ondas.

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