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DJ Rennan da Penha no Baile da Gaiola. Foto: Matias Maxx/VICE
Música

O funk e a criminalização da cultura periférica jovem no Brasil

A prisão do DJ Rennan da Penha é uma nova face da história de repressão às manifestações populares do país.

A história da música do Brasil é repleta de bairros e cidades que inspiraram canções clássicas. Existe a Ipanema de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, o Capão Redondo dos Racionais MCs, a Mucuripe de Belchior, a Recife de Chico Science, a Bahia de Dorival Caymmi e outros muitos. No verão de 2019, a música popular brasileira cartografou um outro território. Não era uma cidade ou bairro inteiro, mas um baile funk realizado às margens de qualquer tipo apoio institucional na Vila Cruzeiro, uma das favelas do Complexo da Penha, uma das áreas onde mais ocorrem tiroteios no Rio de Janeiro. Os hits “Tu Tá na Gaiola”, “Vou Pro Baile da Gaiola”, “Vamos Pra Gaiola” (de Kevin o Chris), “Me Solta” (de Nego do Borel) e “Hoje Eu Vou Parar na Gaiola” (de Livinho e Rennan da Penha) reconstruíram o imaginário do Rio ao cantar o baile, que se transformou em um símbolo de diversão e felicidade máxima.

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Cinco meses depois, a Gaiola virou um fantasma a pairar sobre a música brasileira. Kevin o Chris participou do show de Post Malone no Lollapalooza cantando “Vamos Pra Gaiola” e até artistas de outros estados — como os MCs pernambucanos Daninho e Troia, que nunca pisaram no Rio — passaram a fazer músicas em homenagem ao baile funk da Vila Cruzeiro. No entanto, desde março o Baile da Gaiola encontra-se fechado e seu criador, o DJ Rennan da Penha, preso ilegalmente, sem provas e sem previsão para ser libertado. A festa, que reunia semanalmente de 7 mil pessoas até 25 mil e era epítome da alegria, foi extinta e seus tambores silenciados pelo Estado e pela Justiça brasileira.


Assista ao nosso documentário sobre o 150BPM, o ritmo frenético que dominou o Brasil:


Uma história de criminalização

Rennan da Penha foi condenado a seis anos e oito meses de prisão acusado de “associação para o tráfico”. Contudo, não há nenhuma prova material de seu envolvimento com o crime. A evidência mais alardeada é um vídeo da Polícia Militar que mostra o DJ cumprimentando um traficante na rua — o que prova apenas que ele conhecia um traficante, morador de sua comunidade, e não uma associação de trabalho para traficantes.

Pro governo do RJ, o funk é igual o crime

O caso Rennan desponta como um das agressões mais violentas contra o funk, mas não é o único. Para entender essa história e a importância de Rennan, é preciso dar uns passos atrás. Oriundo de negros das favelas cariocas dos meados anos 1980, o funk é vítima de um processo histórico de criminalização que vive se atualizando. Ao analisar 125 artigos sobre funk publicados nos principais jornais do país entre 1990 e 1996, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Micael Herschmann identificou que essa associação do funk como extensão do crime ocorre na origem, logo quando a imprensa passa a tematizar o funk vinculado aos arrastões ocorridos em 1992 nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Para se ter uma ideia, entre 1990 e 1991, apenas três artigos sobre funk haviam sido publicados. Após os arrastões, o número cresce radicalmente: são 19 artigos publicados em 1992, 15 artigos em 1993, outros 31 em 1994, mais 40 em 1995 e 17 em 1996.

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O professor aponta ainda que, nos anos que se seguiram aos arrastões, as matérias feitas pelos jornais constantemente traziam informações destacadas em boxes que lembravam aos leitores a origem social do funk e muitas vezes a inclinação supostamente criminosa de seus integrantes. “Cada vez mais, o funkeiro foi sendo apresentado à opinião pública como um personagem ‘maligno/endemoninhado’ e, ao mesmo tempo, paradigmático da juventude da favela, vista, em geral, como ‘revoltada’ e ‘desesperançada’”, escreve Herschmann no livro “O Funk e o Hip Hop Invadem a Cena”. “Nos artigos dos principais jornais –– nas matérias e seções de ‘Cartas dos Leitores’ –– e nos depoimentos colhidos na pesquisa, a constante presença de qualificativos como ‘bestas’, ‘hordas’, ‘animais’ e ‘monstros’ indica que, tanto no enunciado jornalístico, quanto no imaginário coletivo, certas atitudes dos funkeiros são tratadas quase como expressão de um ‘mal absoluto’ que deve ser ‘reprimido’ e ‘extirpado’”.

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Frequentadoras do Baile da Gaiola dançam até o amanhecer. Foto: Matias Maxx/VICE.

Além da esfera midiática, a criminalização ocorreu também no campo jurídico e político. Em 1999, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito “com a finalidade de investigar os ‘bailes funk’, com indícios de violência, drogas e desvio de comportamento do público infanto-juvenil”. Caracterizando os bailes como um assunto de polícia — e não de cultura e lazer —, a CPI resultou na promulgação em 2000 da Lei nº 3.410, que restringia os bailes funk com uma série de burocracias. Entre elas: a instalação obrigatória de detectores de metais nas portarias dos bailes, presença de policiais militares durante todo o evento, permissão escrita da polícia para autorização da festa, interdição de locais onde se realizem “atos de violência incentivada, erotismo e pornografia” e proibição da execução de “músicas e procedimentos de apologia ao crime”.

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Em 2008, a Lei nº 5.625 estabeleceu normas ainda mais restritivas. Segundo esta nova legislação, para ser realizado um baile funk era necessário solicitar uma permissão com antecedência mínima de 30 dias mediante apresentação de uma série de documentos, como contrato de empresa autorizada pela Polícia Federal a responsabilizar-se pela segurança interna do evento e comprovante de instalação de detectores de metal, câmeras e dispositivos de gravação de imagens — essa burocracia limitava-se apenas aos bailes de funk.; outros tipos de festa não precisavam desse trâmite. A situação só foi revertida um ano depois, quando a foi publicada a Lei nº 5543, que definiu o funk como “movimento cultural e musical de caráter popular”. Ainda segundo a lei, os assuntos relativos ao funk deveriam ser tratados prioritariamente pelos órgãos do Estado relacionados à cultura, sendo proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito. Apesar da instauração da “Lei Funk é Cultura” (como ficou conhecida), o funk do Rio de Janeiro sofreu um golpe violento que praticamente extinguiu os bailes em novembro de 2010. As Forças Armadas e as Polícias Federal, Civil e Militar invadiram a favela Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão para a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Celebrada na imprensa nacional como “vitória contra o crime”, a operação não prendeu nem o chefe do varejo de substâncias ilícitas da Vila Cruzeiro (Fabiano Atanazio da Silva, o “FB”) nem o do Alemão (Luciano Martiniano da Silva, o “Pezão”). Mas cinco dos principais MCs da cidade (Frank, Max, Tikão, Dido e Smith) tiveram ordem de prisão decretada e foram presos ilegalmente em dezembro.

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Implementadas desde 2008, as UPPS baseavam-se na supressão de garantias constitucionais individuais — as chamadas cláusulas pétreas — sob a tutela de uma autoridade policial. Na prática, foi uma atualização dos mecanismos legais que restringiam os bailes, desta vez nos territórios das 13 favelas “pacificadas”. Após as invasões, instaurou-se por tempo indeterminado um estado de sítio não declarado que culminou em 2010 com a invasão da Vila Cruzeiro e do Alemão e os bailes ficaram proibidos. Os funkeiros não se calaram. Se o MC Dido não podia cantar “UPP Filha da Puta Sai do Borel e do Andaraí” ou se MC Tovi não podia cantar “O Jeito é Não Entrar Aqui a UPP”, suas vozes e de outros relíquias do proibidão foram se espalhando por centenas de gravações remixadas por DJs. É o caso da coletânea “Unidos Contra a UPP”, que reunia vários MCs em músicas de protesto contra a nova política de segurança.

CD Unidos Contra a UPP:

“Quando as UPPs se instalam, a gente pode dizer que a primeira iniciativa era acabar com baile funk. Evidentemente não era só funk, eram as diversões de rua em geral, mas o funk era particularmente perseguido. Tanto o baile quanto as pessoas”, diz a antropóloga Adriana Facina (UFRJ), que escreveu sobre o assunto. “Uma vez eu tava na Cidade de Deus e tinha uns meninos ouvindo funk num bar e a polícia mandou tirar. Conforme foi ocorrendo a decadência das UPPs, os bailes foram voltando em alguns lugares, embora não na mesma dimensão. Mas agora a gente vive uma criminalização muito forte. Não só invasão policial em baile, mas também a criminalização dos realizadores e dos artistas e a tendência é a diminuição da realização dos bailes”, conta.

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Rennan e a importância da Gaiola

Ao mesmo tempo em que faz parte deste contexto, a prisão de Rennan da Penha representa o grau máximo da criminalização. Guilherme Pimentel é advogado participou da fundação da Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) e coordenou o Defezap, rede de denúncias de violência de Estado no Rio. Para ele, o caso tem uma nível de violência inédito. “Rennan é o número um da atualidade do funk carioca em termos de alcance, de repercussão, de movimentar as bases. É verdade que a criminalização do funk atingiu alguns artistas famosos. Mas atingir o mais famoso, na crista da onda, com esse grau de intensidade jurídica é a primeira vez, o que torna o caso um simbolismo de ataque ao funk como um todo”, analisa.

Rennan da Penha foi um dos responsáveis por movimentar o underground e colocar o Rio de Janeiro novamente no centro do funk como principal representante do movimento 150 BPM. De uma pequena festa no Bar da Gaiola (porque era fechado com grades), o Baile da Gaiola se transformou na maior festa do estado e acontecia na rua, de graça.

Combinando diversão, humor e crítica social, a Gaiola foi palco de importantes protestos contra Bolsonaro no período eleitoral, sendo o palco inclusive de um show e discurso histórico de Mano Brown. Em janeiro deste ano, Rennan ainda cutuou indiretamente o governador Wilson Witzel (notório homofóbico e incentivador de snipers em operações policiais nas favelas) ao promover a primeira parada LGBTI do Baile da Gaiola.

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Para além do seu trabalho como DJ, produtor musical e radialista, Rennan se destacou pelo talento de para reunir e agregar pessoas. É o caso de Iasmin Turbininha, primeira DJ mulher do funk. Para ela, Rennan foi um incentivador: “Sofri muito preconceito no começo. Diziam: ‘Vai lavar a casa’, ‘vai lavar calcinha’. Mas teve gente que me apoiou e o Rennan foi uma delas. Assim consegui ter mais amizade [com pessoas do funk], consegui me inspirar mais. Tinha lugares que eu não tocava e agora toco”, afirma Turbininha.

A DJ acredita que o legado de Rennan — preso há quatro meses — permanece vivo por ter aberto os caminhos para uma nova geração de funkeiros do Rio. “Vários DJs estão ganhando dinheiro hoje porque o cara conseguiu levantar o funk e esse novo ritmo do Rio [150 BPM]. Ele bateu no peito e defendeu quando as pessoas preferiam falar mal antes de conhecer. Com a exposição e a atitude dele, o Rennan conseguiu mudar isso”, ressalta. E acrescenta: “Estou com ele até o final. O moleque vai sair dessa, vai dar outra volta por cima e vai quebrar tudo".

Apesar do otimismo de Iasmin Turbininha, o quadro de Rennan é complicado. Após a condenação em segunda instância, só lhe resta recorrer às mais altas cortes do País, em Brasília: o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), sendo que este último analisa apenas as questões constitucionais — isto é, se o processo seguiu as “regras do jogo”.

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A família de Rennan prefere não comentar mais o caso na imprensa. Em junho, a namorada do músico contou que ele não quer mais tocar no Baile da Gaiola — embora não pretenda encerrar a carreira de DJ. “Ele não precisava mais fazer o baile. Fazia porque se sentia em casa, gostava e encontrava os amigos. Mas, apesar de ser a raiz dele, não quer mais [tocar]. Tenho certeza que vão continuar querendo prejudicá-lo”, disse Lorena Vieira em entrevista ao jornal O Dia.

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Rennan da Penha. Foto: Matias Maxx/VICE.

Novo capítulo da perseguição ao funk e ao funkeiro?

Lorena Vieira, namorada de Rennan da Penha, foi profética quando disse ter “certeza que vão continuar querendo prejudicá-lo”. Mas com Rennan preso, o alvo parece ser outro. No dia 26 de julho, Iasmin Turbininha e Polyvox, DJs residentes do baile da Nova Holanda, no Complexo da Maré, foram intimados a prestar depoimento na delegacia. Outros 3 DJs que preferiram se manter anônimos também foram intimados. A intimação foi expedida pelo delegado Flávio Almeida Narcizo, que nada tinha a ver com o caso de Rennan. É, portanto, um novo caso, o que levanta suspeitas sobre uma nova “caça às bruxas” contra o funk.

Como o inquérito está sob sigilo, não se sabe ao certo sobre o que é o caso. Segundo informações da produção de Turbininha e o advogado de Polyvox, José Estevam Macedo Lima, a polícia quer saber como é financiado o baile da Nova Holanda e convocou os DJs para prestar esclarecimentos.

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“Após obtermos acesso ao procedimento investigatório, inferimos que se trata de uma investigação preliminar, ainda sem tipificação penal, sendo considerada, nesse momento, como fato atípico pelos investigadores, sem qualquer indício ou provas da prática de qualquer ilícito penal por qualquer pessoa”, afirmou o advogado ao Portal KondZilla.

Para Guilherme Pimentel, o próprio foco de investigação sobre os bailes já indica um ímpeto criminalizador. “O baile nada mais é que um baile. Uma reunião de pessoas com fins pacíficos, onde o moradores, vizinhos, jovens vão lá curtir. Qual o crime que existe nisso?”, questiona o co-fundador da Apafunk. “Esse tipo de foco do aparato de repressão nos eventos culturais é resultado de uma generalização, de uma ideia de que os criminosos e perigosos estão nas favelas. E, portanto, formam o perfil daquele que é construído como inimigo: o jovem negro de favela com baixa escolaridade que tem na sua cultura, nos seus modos de vida, o hábito de frequentar bailes funk. O funk está no centro disso porque é a expressão cultural de massa desse setor da sociedade.”

Mas, afinal, como os bailes são financiados?

No início dos anos 2000, após todas as restrições impostas pela lei para realização das festas de funk, os bailes passaram a se concentrar nas favelas. Nessa fase, acontece uma aproximação entre as facções e o funk e cresce a vertente “proibidão”, que reflete sobre as benesses e os dramas da vida no crime e os dilemas da guerra às drogas. No entanto, sempre houve uma fronteira bem definida entre as atividades — um MC não é traficante e vice-versa. É nesse período que traficantes de algumas comunidades passaram a financiar bailes direta ou indiretamente.

O modo mais difundido de financiamento indireto — ainda presente em certos bailes — é aquele conhecido como “arrego”, que consiste em acordos entre lideranças da facção local e policiais militares mediante pagamento de taxa para garantir a paz em dia de baile. No caso do Baile da Gaiola, boatos dão conta de uma quantia entre R$ 50 mil a R$ 80 mil pagos semanalmente pelo Comando Vermelho à PM. O compositor Praga definiu a situação nos versos da música “O Crime Tá Aí”: “A paz vira negócio onde a guerra prevalece”.

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Autor de clássicos do proibidão como “Vida Bandida” e “Visão de Cria”, Praga discorreu sobre a relação entre os bailes e o tráfico em longa entrevista concedida ao pesquisador Carlos Palombini em 2013. “O FB [chefe do tráfico na Vila Cruzeiro preso em janeiro de 2012] fazia o que o Estado não fazia. Porque se este visse o funk como geração de emprego, o FB não promoveria o baile. A favela está aí, já não há a desculpa do tráfico: a UPP não está aí? Por que não botam baile? Ao contrário, proíbem”, critica. “A importância do FB consiste em ter feito o que o governador deveria fazer: aproveitar esse espaço e essas pessoas e esse trabalho e empregá-los, ao invés de desempregar, qual fez. O FB dava emprego fora do tráfico, indiretamente. Não éramos traficantes, os MCs não pertenciam ao tráfico. Eles cantavam porque alguém dava oportunidade. A oportunidade que outros deveriam ter dado vinha de um traficante”.

Ele completa: “Ele não era um líder comunitário, era um traficante. A única coisa que me beneficiou foi o baile, porque foi através dele que as músicas foram divulgadas. Foi onde surgimos, onde havia equipe de som, barraqueiro, MC. Onde todos faziam parte. Não precisaria ter sido promovido por um traficante, mas foi”.

Mas esse cenário descrito por Praga mudou muito. Autor da tese de doutorado “Bastidores do baile: técnica, produção e circulação musical no funk carioca” (UFRJ), o antropólogo Dennis Novaes afirma que bailes já foram parcialmente financiados pelo tráfico, mas que atualmente essa contribuição é cada vez menor. “O que temos vivido desde os anos 2000 (quando os bailes de favela passaram a ser o centro do funk carioca) até hoje é um crescimento da independência dos barraqueiros no financiamento da festa. Hoje em dia os barraqueiros são responsáveis por financiar maior parte do baile. Em alguns bailes eles financiam tudo”, informa.

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Barraqueiros são os comerciantes informais que vendem bebidas e comida durante a festa. “São pessoas que moram na comunidade e que dão um jeito de ganhar um dinheiro ali, um sustento com um baile que rola na favela. Pedem uma tenda emprestada, muitas vezes compram fiado para vender no baile, conseguir pagar a dívida e botar comida na mesa”, define Iasmin Turbininha.

Em muitos bailes de favela atuais é comum também que os DJs não cobrem cachê. O baile funciona como uma plataforma para construir público, um nome e uma reputação para então tocar (com cachê) em festas e produzir músicas para MCs.

Polyvox organiza desde junho de 2018 o baile da Nova Holanda. Numa entrevista concedida em dezembro do ano passado, ele me deu detalhes do realização. “Hoje a gente não tira grana do baile porque todo dinheiro que é gerado no baile é pro barraqueiro pagar seu aluguel, sustentar a família dele. O nosso dinheiro a gente ganha por fora com show. Eu faço o baile porque quero fazer e é pela comunidade. Eu não tiro um real do baile da Nova Holanda”, ressalta.

Ele detalha ainda: “Pegamos os dinheiro com o barraqueiro. São 15, 20 barracas. Cada um dá uma certa quantia — R$ 200, R$ 300 — e paga o som. Aí se tiver uma atração extra, tipo um grupo de pagode, a gente junta dinheiro e paga o cachê. Às vezes trabalha duas, três semanas para na outra semana botar um pagode, um palco melhor. Todo baile da Nova Holanda é sustentado pelos barraqueiros”.

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E o que os DJs ganham com isso? “Ganhamos nome para tocar fora e estourar música. A gente explode música e temos uma opinião muito sinistra lá dentro. Somos formadores de opinião na comunidade. O que tá acontecendo lá dentro, nós colocamos pra fora”, explica.

Turbinha reforça o relato de Polyvox. “Nunca cobrei para tocar em favela. O baile funk é aquela distração para comunidade que só tem stress, problema. É o momento de tirar tudo da mente. E é a comunidade que leva onde a gente tá hoje, é a pessoa que divulga teu trabalho”, destaca.

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Foto: Matias Maxx/VICE.

A importância do baile para as comunidades

Num país em 75,5% das vítimas de homicídio são negras, os bailes funk têm uma relevância dupla. O primeiro nível é quanto a geração de empregos na favela de maneira orgânica. “Ouvi falar que cada barraqueiro contribui num baile grande como o do aniversário do Rennan da Penha [que reuniu 24 mil pessoas] cada barraqueiro contribui com R$ 5 mil. Mas em compensação alguns barraqueiros chegam a lucrar R$ 10 mil numa noite. Numa comunidade que convive com os revezes do sistema capitalista — a miséria, a precariedade —, ter essa quantidade de dinheiro, esse fluxo de renda circulando é algo incrível”.

Novaes observa ainda que essa renda é mais bem distribuída. “Diferente do que acontece em outras manifestações, eventos ou festivais culturais em que a renda tende a ser concentrada em poucos produtores, a economia do funk carioca — e isso é o mais incrível — beneficia muitas pessoas. É uma rede muito grande de gente envolvida na produção não só das músicas mas da produção do próprio baile”.

Para além desse aspecto mais visível e imediato da renda e empregos, outro ponto fundamental para entender a importância do funk é pensar em como ele constrói a autoestima dos moradores de favela. Sobre este aspecto, Dennis Novaes menciona os ideias do geógrafo Milton Santos, que defendia que a facilitação do acesso aos meios técnicos e informacionais possibilitam uma “revanche” da cultura popular sobre a cultura de massas.

“Se a cultura de massas sempre foi destinada a obliterar as manifestações culturais locais, quando você tem essa facilidade para produzir uma música no computador, no celular e isso virar um sucesso global — como é o caso de ‘Bum Bum Tam Tam" e é o caso de outros funks —, o que você faz é transformar a cultura popular local em uma cultura de massa”, explica o pesquisador. “Desde a década de 90 até hoje, o que a gente vê é isso. As favelas cariocas foram colocadas no mapa do Brasil para o Brasil inteiro. Apesar de toda precariedade, da violência que os moradores de favela convivem, das incursões policiais, do genocídio, o que a gente tem é esse outro mapa que o funk fornece e que o Brasil inteiro quer saber o que é a Gaiola. E a partir daí saber o que é o Complexo da Penha; quer saber o que tem na Cidade de Deus ou o que tem no Complexo do Lins, onde rola o Baile da Colômbia e o que tem de tão incrível que transforma esses lugares em centros de produção cultural para o Brasil inteiro. Essa importância é impossível de ser quantificada porque ela tem um valor simbólico que só pode ser minimamente mensurado com o tempo, para gente entender o que é essa transformação no imaginário, na vida e na cultura das favelas cariocas”.

Marginalizado desde o início, o funk é uma cultura de sobrevivência que driblou diversos ataques. Mas até quando será possível sobreviver assim? Até quando os tambores eletrônicos do Baile da Gaiola continuarão ecoando? A criminalização do funk é fruto da combinação do racismo institucional com a falida guerra às drogas mais a criminalização da pobreza. Por que a população carcerária do Brasil quase dobrou nos últimos dez anos e é 64% negra? Por que atacar somente o varejo de substâncias ilícitas, justamente a parte menos lucrativa, que acontece nas morros? E por que se considera que moradores de favela como cidadãos de segunda classe, passíveis de ter suas casas invadidas e direitos violados? O Brasil prefere ignorar essas perguntas. E os funkeiros vão levando como podem, improvisando suas própria formas de existência.

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