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Esportes Flamengo

Libertadores do Flamengo perdoa antigos vilões e inspira cultura do gasto responsável

Além da Nação em festa, a travessia rubro-negra ensina ótimas lições
Diego observa carinho de Gabigol na taça da Libertadores Foto: Ricardo Moreira/Zimel Press/Agência O Globo
Diego observa carinho de Gabigol na taça da Libertadores Foto: Ricardo Moreira/Zimel Press/Agência O Globo

Antes de mais nada, só um louco programa para este fim de semana uma rodada diversionista de Brasileirão, paralela à decisão da Libertadores, mas eu não pretendo me alongar nisso.

Dito isso, quem vê o Flamengo precisa entender a travessia completa que leva a esta tríplice coroa. Nenhuma taça de magnitude continental é conquistada por acaso, ou por apenas um motivo. Houve um Jorge Jesus, houve os extraordinários reforços pontuais, mas houve antes muita história. Houve uma esforço dedicado no sentido de quitar as dívidas e aprender a ganhar. No Carnaval deste domingo, muitos débitos do clube enfim foram zerados.

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Quitar as dívidas e gerir recursos é algo que muitos dos nossos clubes ainda fazem mal. Em 2013, quando a chapa azul fez presidente Eduardo Bandeira de Mello, a responsabilidade fiscal se tornou prioridade. Era preciso cortar gastos, livrar o clube de penhoras, equacionar as urgências a fim de poder, com um cenário menos nebuloso, criar condições para um planejamento.

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Quem olha as recentes campanhas do Flamengo no Brasileiro vê um time frequentador assíduo do G4, e isso não é à toa: a primeira coisa que um clube ajustado regulariza são suas campanhas. Transformar isso em um título da elite continental não é pouca coisa — e só um time consegue isso por ano. O segundo gol de Gabigol, não se engane, começa por aí.

Quando se trata de um clube como o Flamengo, esse tipo de sucesso inspira uma sociedade inteira. Reforça a cultura do poupar, do investimento consciente, de gasto responsável. Da administração da casa à aposentadoria privada, passando pelos riscos da Bolsa, um triunfo desse tamanho dá enorme contribuição não só para um tipo de pensamento esportivo, mas também o econômico. Porque esta Libertadores rubro-negra não é só um título. É um sonho surrado e frustrado há 38 anos por um quinto da população do Brasil.

O drama pós-Júnior

O torcedor do Flamengo que sai de 1992 ouvindo o canto do cisne da geração Zico — ou seja, a aposentadoria de Júnior, o último elo dessa história vencedora — passa uma década inteira percebendo a depreciação do título solitário de 1981, seja porque São Paulo, Grêmio se tornam bicampeões continentais, seja porque o Vasco iguala o feito no Rio. Como reconquistar a América? Como encarar 1981 não como um ano de exceção, aberrante, mas como a vocação internacional que o rubro-negro acredita ter?

Essas respostas não vinham. Com o tempo, a Libertadores se tornou mais difícil, e até ídolos como Petkovic viram seus times eliminados na primeira fase. A cada vez que o Flamengo virava piada continental, o ano de 1981 parecia um acidente irrepetível. Uma nova conquista da Libertadores parecia ainda mais urgente, o que justificava o inconformismo crescente da torcida. Uma sede de gerações se confundia, entre os que queriam viver tudo de novo e os que chegavam aos quarenta anos sem jamais ter visto a glória ou, pelo menos, sem ter como se recordar dela.

Perdões distribuídos

A final de Lima é libertadora, porque também quita as dívidas com esse investimento emocional de 40 milhões de torcedores. Estão perdoados os débitos gerados pela goleada de 5 a 1 do Grêmio em 1984; pelo vexame contra o Defensor uruguaio em 2007; pela despedida de Joel Santana contra o América em 2008; por Rodrigo Alvim, Vinicius Pacheco e o desinteresse de Adriano em 2010; pelo gol do Emelec gritado na orelha de Leo Moura em 2012; por Matheus Sávio e Zé Ricardo contra o San Lorenzo em 2017; e pela freguesia ante o Cruzeiro em 2018. Nenhuma dessas datas será lembrada novamente com o mesmo rancor, nenhum desses profissionais voltará a ter suas infelicidades descritas como vilania.

Ao mesmo tempo prova que finanças bem controladas no mínimo ajudam a sorte. Entregues à atual gestão de Rodolfo Landim, elas trouxeram no meio do ano (e ainda a tempo) dois laterais, um zagueiro, um volante e um técnico português, para um encaixe imprevisível que se mostrou certeiro. Aos 43 e aos 46 do segundo tempo em Lima, Gabigol não pensava em salários atrasados. Quem defendia que “bom era no tempo da penúria" é apenas uma besta querendo atenção.

(Alías, será fundamental aproveitar essa onda para acelerar o acerto com as famílias enlutadas do Ninho. Judicializações à parte, e todos têm o direito de mediar conflitos e indenizações na Justiça, as dívidas morais da instituição pesam mais do que as monetárias ante boa parte da opinião pública)

A conclusão é que, depois de extrair lições diferentes das mais diversas derrotas, o Flamengo, enfim, reaprendeu a ganhar. Nada garante que o time atropelará na final de 2020 no Maracanã, mas é bem provável que vá longe, como foram os campeões Grêmio e River nos anos seguintes a seus últimos triunfos. O resto é futebol, em que a bola pode não entrar, mesmo que se acerte em tudo. Se em 2020 não houver Carnaval,tudo bem: bastará perguntar a Jürgen Klopp, do sonhado rival Liverpool, que precisou de quatro anos para ser campeão de qualquer coisa.