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Reinaldo Azevedo

GLO para desocupação de terra é só delírio autoritário e inconstitucional

Reinaldo Azevedo

26/11/2019 05h40

 

 

Jair Bolsonaro: presidente decide enfiar o pé na agenda reacionária e golpista (Foto: Madoka Ikegami/POOL/AFP)

O presidente Jair Bolsonaro disse que vai mandar um projeto de lei para o Congresso autorizando operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para efetivar a reintegração de posse de áreas invadidas no campo que contem com ordens de reintegração de posse não-cumpridas nos Estados. Se uma estrovenga como essa fosse aprovada pelo Congresso, coisa de que duvido, seria barrada pelo Supremo. Tratar-se-ia de uma inconstitucionalidade arreganhada.

Note-se que, na semana passada, já escrevi a respeito, Fernando Azevedo e Silva entregou outro projeto de lei de que garante excludente de ilicitude nessas operações de Garantia da Lei e da Ordem. Somando-se as duas coisas, tem-se que Bolsonaro quer soldados das Forças Armadas, associados à Força Nacional de Segurança, às divisões da Polícia Federal e das polícias militares e civis metidos em operações de reintegração de posse, que são de competência dos Estados, com carta branca para matar. No projeto enviado por Azevedo e Silva, apenas os excessos dolosos seriam eventualmente punidos. Dada a forma do texto, estaria garantida a impunidade.

O que quer Jair Bolsonaro? Parece haver mesmo a disposição de empreender um processo de radicalização no país. Assim, em vez de o governo federal investir na paz e na distensão, faz o contrário. Há uma ação deliberada, resta evidente, para atrair as esquerdas e os movimentos sociais para o confronto. E, como se vê, parece que agora virou moda, seguindo o modelo Sergio Moro de criar conflitos, apelar a projetos de lei, que são aprovados por maioria simples, para mudar disposições constitucionais.

Vamos ver. De onde nascem as operações de Garantia da Lei e da Ordem? Do Artigo 142 da Constituição, que define no seu caput:
"Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."

Este Artigo 142 tem um Parágrafo Primeiro, que estabelece:
"§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas."

Logo, qualquer mudança no emprego das ditas-cujas tem de ser feita por Lei Complementar, não por lei ordinária. A diferença está no quórum. A Lei Complementar só pode ser aprovada por maioria absoluta: metade arredondada para cima do total de parlamentares de cada Casa: 257 deputados e 41 senadores. Bolsonaro afirma que vai enviar projeto de lei, aprovado com menos votos. Bastaria uma maioria desde que presentes à sessão metade de cada Casa. Pode-se, pois, aprovar um projeto de lei com 21 senadores e 129 deputados.

A lei ordinária, pois, não pode mudar o que a própria Constituição diz ser matéria para lei complementar. A inconstitucionalidade não reside apenas aí.

Segundo o Artigo 142 da Carta, as Forças Armadas só podem ser convocadas — e, no caso das operações de Garantia da Lei e da Ordem, associados a efetivos policiais federais e estaduais, além da Força Nacional de Segurança — para garantia das prerrogativas dos poderes constitucionais ou da lei e da ordem.

Ora, uma invasão de propriedade ou a resistência à reintegração de posse não ameaçam nem os Poderes da República nem a lei e a ordem — nada de que as forças de segurança dos Estados não possam se desincumbir. Aliás, a Lei Complementar 97, de 1999, que trata das operações de GLO diz a que se prestam:
"§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal."

Entre esses instrumentos, estão as polícias militares e as polícias civis dos Estados. Será mesmo que o presidente pode determinar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem na suposição de que as forças policiais estaduais seriam incapazes de fazer uma reintegração de posse?

É claro que um troço como esse não passaria pelo Supremo porque, de resto, Bolsonaro estaria desrespeitando o princípio federativo, atuando como se o Brasil fosse uma República unitária. "E se o governador pedir a intervenção federal numa reintegração de posse, Reinaldo?" Bem, não creio que o fizesse porque seria assinar o atestado de irrelevância. De qualquer sorte, ainda que viesse um projeto de lei com o conteúdo anunciado pelo presidente, ele seria, reitero, inconstitucional no conteúdo e na forma.

Como inconstitucional é o projeto de lei enviado por Azevedo e Silva que garante excludente de ilicitude nas operações de Garantia da Lei e da Ordem. A licença para matar agride, quando menos, o Inciso II do Artigo 4º da Constituição, segundo o qual a República brasileira se baseia na "prevalência dos direitos humanos".

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.