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Análise: Voto de residentes na Argentina e medo de virada à direita explicam resultado apertado no Uruguai

Centro-direita deve voltar ao poder, mas com muito menos força do que esperava
Foto: AFP
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RIO - A pergunta que não quer calar desde domingo à noite no Uruguai é por que a diferença de votos entre o candidato de centro-direita à Presidência, Luis Lacalle Pou, e o esquerdista Daniel Martínez foi tão menor que a esperada . Todas as pesquisas divulgadas no país — que não costumam errar por tanto — projetaram pelo menos cinco pontos de vantagem a favor do ex-senador do Partido Nacional e dados oficiais já divulgados mostraram que a diferença entre ambos está em torno de 28 mil votos.

Após a finalização do processo de apuração, analistas estimam que Lacalle Pou deverá superar o ex-prefeito de Montevidéu por pouco mais de um ponto percentual. O que aconteceu? A reposta não é simples e envolve uma série de fatores, entre eles a quantidade de uruguaios que moram na Argentina, têm a dupla cidadania, e desta vez decidiram atravessar o Rio da Prata para participar da eleição em sua terra natal.

O primeiro turno da eleição uruguaia coincidiu com o primeiro turno da eleição argentina, e muitas destas pessoas, naquele momento, optaram por não viajar. São, em sua grande maioria, eleitores da Frente Ampla. Como explicou o analista Eduardo Botinelli, diretor da Factum, uma das empresas de consultoria que  domingo indicaram que havia um empate entre os dois candidatos, a influência dos uruguaios que vivem na Argentina foi grande e com certeza inclinou a balança a favor de Martínez.

Não a ponto de impedir o triunfo de Lacalle Pou , mas sim de criar uma situação inesperada e que gerou forte temor entre os cinco partidos da aliança de centro-direita que sustenta sua candidatura. Estima-se que 35 mil uruguaios que emigraram para a Argentina e não votaram no primeiro turno desta vez fizeram questão de votar no Uruguai. Em 27 de outubro, o número calculado pelos analistas ficou entre 10 e 15 mil pessoas.

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Mais eleitores da Frente Ampla em campo e, paralelamente, uma série de atitudes e acontecimentos que despertaram dúvidas sobre a aliança eleitoral de Lacalle Pou, especificamente sobre o senador e ex-candidato presidencial Guido Manini Rios , até março passado chefe do Exército uruguaio.

Após ser afastado e passado para a reserva pelo governo do presidente Tabaré Vázquez por suspeitas de acobertamento de militares reformados que confessaram em tribunais militares terem cometido violações dos direitos humanos na última ditadura (1973-1985), o senador lançou o partido Cabildo Abierto e obteve 11% dos votos no primeiro turno das presidenciais. Tornou-se, assim, peça-chave na aliança de centro-direita liderada por Lacalle Pou e é quem poderá, eventualmente, lhe garantir maioria parlamentar.

Candidato da centro-direita disse que Uruguai viverá momento histórico
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Dois dias antes do segundo turno, Manini Ríos gravou um vídeo que viralizou em todas as redes sociais no qual praticamente ordenava que os militares votassem em Lacalle Pou e acusava os governos da Frente Ampla de terem tratado os membros das Forças Armadas como "carne com olhos".

Simultaneamente, mensagens intimidatórias circularam pelo WhatsApp afirmando que “se define o futuro de nossa Pátria”. “Temos de votar em Lacalle para presidente com o apoio de nosso comandante general do Exército Guido Manini Ríos. Sabemos quem você é e contamos com seu voto e o de sua família para salvar a Pátria. É uma ordem. As ordens se acatam e quem não o fizer é um traidor. Sabemos como tratar os traidores”, dizia o texto.

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Estas mensagens, acreditam especialistas como o sociólogo Ernesto Nieto, tiveram forte impacto emocional entre muitos uruguaios, sobretudo nos que desconfiavam do verdadeiro perfil do Cabildo Abierto. Instalou-se a sensação de que um dos principais sócios políticos de Lacalle Pou chefia um partido militarista e autoritário e que sua presença num eventual governo de centro-direita poderia implicar uma volta ao passado. Isso explicaria, por exemplo, que eleitores do Partido Colorado que nunca gostaram de Manini Ríos apesar de pertencerem à mesma aliança eleitoral tenham decidido votar em Martínez e não anular o voto.

Entre o primeiro e o segundo turno, o número de votos nulos e brancos praticamente não se modificou, apontou Botinelli, e isso poderia significar que seguidores de partidos da aliança de centro-direita de fato se assustaram com as mensagens do ex-chefe do Exército e tomaram a ousada decisão de favorecer a Frente Ampla.

No Uruguai, a opinião generalizada é de que a centro-direita vai voltar ao poder, mas com muito menos força do que esperava. Para que isso não aconteça, Martínez deveria contestar a anulação de uma grande parte dos 50 mil votos nulos ou ficar com mais de 90% dos chamados "votos observados", que correspondem a pessoas que votaram em distritos eleitorais que não eram os que lhes correspondiam.

O país está dividido. A Frente Ampla obteve um desempenho melhor que o esperado e venceu na capital e no departamento vizinho de Canelones. A aliança de Lacalle Pou foi a mais votada em todo o resto do interior do Uruguai. Se o candidato de centro-direita for mesmo o sucessor de Vázquez, deverá governar um país no qual sua oposição teve o voto de metade dos eleitores, está unida e é famosa por sua disciplina partidária. Já a aliança de centro-direita é uma incógnita até mesmo para quem a integra.