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Análise: Com ataque direto, Irã muda padrão de engajamento com os EUA

Morte de Soleimani e mísseis contra base usada pelos americanos no Iraque colocaram as duas nações à beira de uma guerra, mas tendência é de redução nas tensões
Iraniana com foto de Soleimani; general era o segundo homem mais poderoso do Irã Foto: REUTERS
Iraniana com foto de Soleimani; general era o segundo homem mais poderoso do Irã Foto: REUTERS

O assassinato do general Qassem Soleimani e os ataques com mísseis iranianos contra uma base iraquiana que abriga militares americanos marcaram um novo e perigoso episódio na tumultuada relação entre Teerã e Washington nas últimas quatro décadas. Afinal, foram ações diretas contra alvos militares, ficando no limiar da definição de uma guerra.

Soleimani era uma das pessoas mais poderosas do Irã, comandante das Forças Quds, responsável por ações no exterior e há alguns anos na lista de sanções dos EUA, acusado de ligação direta com centenas de atos de terrorismo. Ao ser alvo dos mísseis americanos, se tornou um mártir, cuja vingança não era opcional: a questão era apenas saber como e quando ela aconteceria.

Atentados contra interesses americanos ao redor do mundo? Ações de grupos aliados contra tropas no Iraque? Foguetes lançados contra Israel?

O fato é que poucas pessoas fora dos círculos de inteligência dos serviços de segurança apostavam em um ataque direto  — talvez o maior desde os meses de combates navais entre forças dos dois países desde na Guerra Irã-Iraque, nos anos 1980.

Na madrugada de quarta-feira, noite de terça no Brasil, dezenas de mísseis balísticos iranianos foram lançados uma base iraquiana usada pelos EUA: Ayn al-Asad.

Esse modus operandi é bem diferente do adotado pelo Irã nas últimas décadas, que deu preferência a ações de grupos auxiliares, como o Hezbollah e as milícias aliadas no Iraque e na Síria, para atacar bases, locais estratégicos e, principalmente, forças americanas.

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Até o momento não há informações sobre vítimas dos EUA — há sim relatos de mortos entre iraquianos, mas o cálculo estratégico deve, de maneira fria, levar em conta apenas a primeira parte deste parágrafo.

Em uma sequência de postagens no Twitter, Ali Vaez, diretor do Projeto Irã do centro de estudos International Crisis Group, considera que, sem caixões cobertos por bandeiras americanas retornando ao país, o mais provável é que a Casa Branca "absorva" o impacto e interrompa a escalada de violência. A alternativa, segundo Vaez, é uma guerra que vai envolver toda a região e cujos impactos são difíceis de estimar. Mesmo assim, ele considera que os dois lados, Trump e o aiatolá Khamenei, forçaram a mão e que foi uma jogada muito arriscada.

Um sinal de que esse cálculo mais prudente pode se concretizar veio nas primeiras declarações de lideranças dos dois lados. A primeira de Donald Trump, que iniciou sua postagem no Twitter com um "está tudo bem". Em tom bem diferente do visto nos últimos dias, quando fez ameaças abertas a Teerã, disse que está sendo feita uma análise de danos e que seu país possui as maiores Forças Armadas do planeta.

No mesmo tom, o chanceler iraniano, Javad Zarif, citou o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, que trata do direito de defesa dos Estados, para confirmar os ataques. Ele afirmou  que não busca o acirramento das tensões, mas que o Irã "vai se defender" contra agressões.

O ponto, segundo Ali Vaez, é que não é o fim da história, e que mesmo retaliações indiretas — leia-se através de grupos aliados — podem ter consequências sérias. Até porque são 40 anos de uma "guerra indireta", marcada por dois episódios traumáticos, e em um momento crítico, como o atual, o passado pode moldar o futuro.

No caso americano, os 444 dias do sequestro dos reféns na embaixada americana em Teerã, em 1979. As imagens dos diplomatas exibidas diariamente nas TVs dos EUA ficaram gravadas não apenas na memória dos que viveram aqueles dias, mas também nas bases de formulação de políticas para o país.

Pelo lado iraniano, a derrubada do voo civil 655 da IranAir pelo navio americano USS Vincennes, matando todas as 290 pessoas a bordo em julho de 1988. Jamais houve um pedido de desculpas por parte de Washington.

Uma prova de como os dois incidentes foram decisivos historicamente pode ser vista nos últimos dias, no Twitter. Trump mencionou ter "52 alvos" para atacar dentro do Irã, uma referência ao número de reféns na embaixada. O presidente iraniano respondeu mencionando o número 290 e afirmando que a nação iraniana "jamais deve ser ameaçada".