Tende a ser barrada na fronteira qualquer tentativa de importação do debate sobre a legalização do aborto que avança na Argentina. Rejeitada pela maioria dos brasileiros, a proposta permanece interditada. Emerge a cada quatro anos do fétido pântano eleitoral, disfarçada de uma discussão política importante, mas volta a hibernar logo depois.
O Congresso e os últimos presidentes brasileiros jamais tiveram coragem de abordar com seriedade o direito à interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação. Enquanto morrem mulheres que realizam abortos ilegais de maneira precária, o assunto só é explorado na política para satanizar adversários.
Em 1989, Fernando Collor levou à TV uma ex-namorada de Lula que contava que o petista havia lhe sugerido um aborto. Em 2010, a mulher de José Serra foi vista na Baixada Fluminense dizendo que Dilma Rousseff queria “matar criancinhas”.
Não se deve esperar que os candidatos ao Planalto estejam dispostos a discutir o tema a sério este ano.
Jair Bolsonaro (PSL) mira um fantasma inexistente para reforçar seu viés conservador e promete vetar uma (improvável) flexibilização da lei. Marina Silva (Rede) se diz contrária à interrupção da gravidez “por convicção filosófica e de fé”, mas condena a prisão de quem fizer aborto.
Ciro Gomes (PDT) resume a questão: “Quero governar o Brasil, e o Brasil é uma sociedade conservadora. Não vou hostilizar as pessoas em nome dos meus valores”. Ele é favorável à legalização do aborto, mas quer desviar do tema na campanha.
Os políticos fingem ignorar a gravidade do assunto e reforçam um tabu: 57% dos brasileiros acreditam que mulheres que fazem aborto fora dos casos previstos na legislação devem ir para a cadeia. Só 36% dizem que não deve haver punição.
Na Argentina, o terreno é mais fértil. A população defende a legalização e, embora o país seja majoritariamente católico, 25% dos argentinos se dizem não praticantes (no Brasil, são 10%). Há mais do que 2.800 km entre Buenos Aires e Brasília.
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