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Cultura

Valter Hugo Mãe: 'Não se deixem convencer de que o Brasil deu errado'

Escritor português defende que, para superar medo do vírus, é preciso investir na lucidez: 'A ingenuidade e a estupidez levam muitos a veicular ódio e discriminação'
O escritor português Valter Hugo Mãe: "Um povo convencido de que é um erro é um povo predisposto a desistir. Não caiam nessa armadilha" Foto: Nelson D'Aires / Divulgação
O escritor português Valter Hugo Mãe: "Um povo convencido de que é um erro é um povo predisposto a desistir. Não caiam nessa armadilha" Foto: Nelson D'Aires / Divulgação

SÃO PAULO – Em março, o escritor português Valter Hugo Mãe publicou uma carta para os “caros amigos do Brasil”, ao perceber que o país se demorava “na tomada de consciência acerca do que a Covid-19 está provocando no mundo”. “São vocês mesmos que, tomando consciência da urgência desta situação, podem escolher parar este vírus antes que os vossos hospitais não tenham nem um pouco de chão para pousar os infectados”, escreveu Mãe na carta.

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O escritor está passando a quarentena em Vila do Conde, em Portugal, na companhia da mãe e do cão Crisóstomo, que empresta o nome do protagonista de “O filho de mil homens”, romance de Mãe publicado no Brasil primeiro pela extinta pela Cosac Naify e depois pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, que o edita por aqui. Crisóstomo, o do livro, só queria ser pai. O cão, denuncia Mãe ao GLOBO por e-mail, “passa o dia inteiro querendo abraços e guloseimas”.

Nesta entrevista, o escritor conta estar aproveitando a quarentena para adiantar dois livros, diz não gostar de estar só e aconselha os “caros amigos do Brasil” a persistir na defesa da democracia.

– Acima de tudo, nunca confiar em quem trata o povo como imbecil e elogia ditadores, torturadores, criminosos de toda a espécie.

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Você escreveu uma carta aos “caros amigos do Brasil” porque o país parecia ignorar os perigos da Covid-19. Continua preocupado com o país?

O Brasil, sendo essa lonjura, é uma inscrição no meu sonho, na minha alegria. Vou estar sempre preocupado com o Brasil. Imagino muito que, um dia, queira passar longo tempo no Brasil, sem pressa, como os cidadãos que se comprometem de verdade. Adoraria empenhar-me num projeto de periferia, favorecendo comunidades com dificuldades, apoiando a causa dos que lutam contra toda a exclusão. Julgo que me apaixono por quem precisa de ser amado. É um efeito de minha carência insanável.

Como você tem passado a quarentena?

Enfrento o isolamento como uma resistência. Na verdade, estou na casa da minha mãe. Ela vai com 80 anos, foi operada há uns anos, eu mudei para meu “quarto de solteiro” e cuido para que ela fique o mais protegida possível. Quero muito não falhar. Assim, converso muito com ela e faço uma festa. E há o Crisóstomo, o meu cão, que está com 8 anos, muito ajuizado e mimado, passa o dia inteiro querendo abraços e guloseimas. Os meus dias ficaram simples, mas seguem muito comprometidos com alguém, muito esperançados e pacientes.

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Você está aproveitando a pandemia para escrever?

Eu estou a trabalhar em dois livros distintos. Entre as notícias e a fuga para meus mundos literários, o tempo está correndo. Quase todos os dias peço mais horas. Queria muito que um dia fosse de 30 horas, no mínimo. O tempo é pouco.

Dá para criar numa hora dessas?

Exige um esforço de abstração, uma capacidade de fuga. Mas acontece. Dependerá do susto que cada um sinta. Alguém esmagado pelo susto talvez não se detenha muito numa construção algo paralela como é a literatura. Mas algo sobrará. Um sem-fim de diários da peste, que admito que me começam a cansar. Mas também grandes obras de ficção. Sempre existirão.

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Personagens solitários que vivem em locais isolados, como uma Islândia ancestral (em “A desumanização”) ou um Japão quase mitológico (“Homens imprudentemente poéticos”), aparecem com frequência em seus livros. Como você lida com a solidão?

Tenho medo de ficar só. Não é só não gostar. É um medo descontrolado desde menino. A ideia de não haver ninguém que me acompanhe, que sinta por mim, é-me insuportável. Talvez me desdobre em cuidados por algumas pessoas para suplicar que não me deixem. Contudo, isso também significa que, tragicamente, me sinto só. Não acredito sequer que alguém nos pode entender o suficiente para conhecer e ser solidário com nossas falhas. A maioria das vezes, nas nossas inevitáveis falhas, estaremos sem ninguém.

Num texto recente, você nos aconselha a cuidar para que o medo do vírus não seja instrumentalizado por políticos antidemocráticos. Como impedir que o medo que sentimos – da doença, da morte, da recessão – tenha consequências políticas negativas?

Investir tudo na lucidez, procurar a melhor informação, nunca compactuar com partilhas precipitadas de ideias torpes e mentirosas nas redes. A informação está nas mãos de todos, somos como que editores de jornais, constantemente decidindo o que publicar. Esse comportamento precisa ser consciente e sério. A ingenuidade e a estupidez levam muitos a veicular ódio e discriminação. Se nos mantivermos calmos, acompanhando dados mais do que opiniões instrumentalizadas por grupos econômicos, teremos capacidade para apostar em quem confiar. Acima de tudo, nunca confiar em quem trata o povo como imbecil e elogia ditadores, torturadores, criminosos de toda espécie.

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A defesa da democracia sempre esteve relacionada à ocupação do espaço público. Que outras táticas podemos usar agora, presos em casa e conscientes de que a internet nem sempre contribui para a expansão democrática?

Denunciar incansavelmente a exclusão. Quem cala vira cúmplice. Tenho muita pena que tanta gente com uma visibilidade incrível fique quieta quando dizem que negro é gado, mulher é pessoa menor, artista é tudo vadio. Se não quer usar sua voz contra algo tão ostensivamente errado, você não está desempenhando cidadania nenhuma. É só um consumidor. Deve ser visto como aqueles patos que engordam para virar foie gras. Um dia o bicho vai ter que comer, e você não serviu para mais do que ser comido.

Além do que disse na “Carta aos amigos do Brasil”, você tem algum outro recado a seus leitores brasileiros?

Nunca se deixem convencer de que o Brasil deu errado. Esse é o primeiro passo que o usurpador do poder dá em direção ao domínio, ele precisa que o povo se motive ao abandono. Um povo convencido de que é um erro é um povo predisposto a desistir. Não caiam nessa armadilha.