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    Artistas podem precisar de programa similar ao da época da Grande Depressão

    No mundo das artes, como em muitas outras áreas, as perdas de vagas foram brutais por causa da pandemia do novo coronavírus

    No mundo das artes, como em muitas outras áreas, as perdas de vagas foram brutais
    No mundo das artes, como em muitas outras áreas, as perdas de vagas foram brutais Foto: New York Times Co./Getty Images

    Ryan Prior, da CNN

    Com a pandemia do coronavírus atingindo duramente a economia, a administradora de artes Deana Haggag se viu em um novo mundo. Presidente da United States Artists (USA), Deana disse à CNN que há algumas semanas ficou claro para ela que “a maioria das organizações culturais seria fechada”. Alarmada, ela começou então a “monitorar as demissões” no setor. 

    No mundo das artes, como em muitas outras áreas, as perdas de vagas foram brutais. “Para muitos de nós, é como se sequer estivéssemos aqui”, disse Deana em uma entrevista por telefone. “Esta é a maior crise que nosso país enfrentou em muitas gerações.” 

    Para tentar fazer a diferença, ela começou a trabalhar nos bastidores. Na quarta-feira, dia 15 de abril, sua organização anunciou um programa de subsídios colaborativos de US$ 10 milhões chamado Artist Relief. A USA, organização de Deana, está trabalhando com outras seis sem fins lucrativos: Academy of American Poets, Artadia, Creative Capital, Foundation for Contemporary Arts, MAP Fund e National YoungArts Foundation. 

    O grupo está oferecendo doações de US$ 5 mil por semana a pelo menos 100 artistas, entre eles poetas, arquitetos e tecelões. A ideia é expandir o programa para mais artistas, se os fundos permitirem. 

    A rapidez com que o programa foi colocado de pé encheu Deana de orgulho. “Isso é, sim, motivo de comemoração”, contou. Mas, ao mesmo tempo, a administradora reconheceu que o lançamento do programa também tem um gosto amargo. “Ler esses pedidos de subsídios é muito doloroso, de partir o coração”. 

    Nas primeiras três horas de inscrição, o portal do grupo recebeu 2.200 solicitações de artistas em necessidade e esperava contabilizar dez mil só no primeiro dia. São técnicos de som, ilustradores, vendedores de ingressos e outros tantos profissionais, que fazem parte do exército de mais de cinco milhões de norte-americanos empregados no setor de artes e cultura, de acordo com o Bureau of Economic Analysis. 

    Programas como o que Deana lidera fazem uma parte de uma onda de iniciativas para lidar com a onda de desempregos.

    Os números oficiais no mês de abril mostraram um aumento histórico no número de norte-americanos que solicitam o auxílio-desemprego. O Departamento do Trabalho (equivalente ao ministério) disse que, na semana que terminou em 28 de março, cerca de 6,6 milhões de norte-americanos solicitaram esses benefícios, um aumento de 3.000% em relação ao mês passado. E as empresas continuam a demitir e dispensar trabalhadores. 

    Ao entrarmos em uma recessão global, vale a pena relembrar como os norte-americanos se reuniram em épocas anteriores de dificuldades econômicas e considerar como isso poderia criar nossa resposta ao dilema atual. 

    Cartaz do projeto de arte federal WPA
    Cartaz do projeto de arte federal WPA (Works Progress Administration) anunciando uma exposição
    Foto: MPI/Getty Images

    Ativo de 1935 a 1943, o Works Progress Administration (WPA) foi um programa do New Deal projetado para oferecer aos norte-americanos trabalho remunerado durante a Grande Depressão, quando o trabalho era escasso. O programa empregou cerca de 8,5 milhões de pessoas em 1,4 milhão de projetos de obras públicas, segundo a Biblioteca do Congresso. 

    Além dos projetos de infraestrutura em todo o país, durante quatro de seus anos de existência o WPA abrigou o Federal Project Number One, que organizou programas de trabalho para milhares de artistas plásticos, músicos, escritores, artistas de teatro e historiadores. Seu legado foi além de dar trabalho ao pessoal da cultura. 

    WPA ajudou artistas desempregados 

    O programa WPA “deu o primeiro emprego a alguns dos melhores escritores do século 20”, como explicou David A. Taylor à CNN por telefone. 

    Taylor escreveu o livro “Soul of a People: The WPA Writers’ Project Uncovers Depression America“ (“Alma de um povo: o projeto dos escritores do WPA revela a América da Depressão”, em tradução livre) que também foi transformado em um documentário com o mesmo título, descrevendo um programa do WPA, o Federal Writers’ Project. Sozinho, ele empregou 7.500 pessoas entre 1935 a 1939. 

    O Writers’ Project, a área dedicada aos escritores, é a parte mais conhecida, graças à produção dos “American Guides”, uma série de guias de viagem de cidades e estados feitos por escritores locais. A folha de pagamento do projeto incluiu futuros grandes nomes da literatura como Richard Wright, Zora Neale Hurston, Ralph Ellison e Saul Bellow (vencedor do Prêmio Nobel de Literatura). 

    Durante seu período no WPA, Zora Neale Hurston usou seu bacharelado em antropologia para narrar histórias de vida no sul dos Estados Unidos. Foi durante seu trabalho de campo financiado pelo WPA na Flórida que ela publicou seu romance mais conhecido, “Seus olhos viam Deus”, em 1937. 

    Como conta David Taylor, o clássico “Homem Invisível” de Ralph Ellisson, lançado em 1952, foi criado a partir de estudos sobre personagens entrevistados durante seu trabalho no Writers’ Project no final dos anos 30. O Federal Writers’ Project também preservou histórias do folclore e da vida afro-americanos que, de outra forma, não teriam sido registrados. Alguns estão registrados na Slave Narrative Collection da Biblioteca do Congresso. 

    No filme “Alma de um Povo”, Maryemma Graham, professora de Inglês e Estudos Afro-Americanos da Universidade do Kansas, argumenta que “o maior impacto individual sobre a escrita negra antes do movimento pelos direitos civis foi realmente o WPA, não o [movimento dos anos 1920] Harlem Renaissance.” 

    Além do projeto para escritores, os projetos para artes visuais, teatro, música e registros históricos empregaram americanos em todo o espectro das artes. 

    Com 20 e poucos anos, um Orson Welles pré-Hollywood dirigiu uma turnê teatral financiada pelo WPA, em âmbito nacional, da peça “Macbeth”, de Shakespeare, com um elenco todo afro-americano. 

    Produção de Macbeth bancada pelo Federal Theater Project
    Produção de Macbeth bancada pelo Federal Theater Project
    Foto: Biblioteca do Congresso dos EUA

    Sob o Federal Art Project, artistas visuais eram frequentemente empregados para criar murais ou pôsteres. Muitos de seus trabalhos podem ser vistos no New Deal Art Registry . Antes de alcançarem um reconhecimento mais amplo, jovens artistas visuais como Jackson Pollock, Mark Rothko e Willem de Kooning, conseguiram sustento pelo programa – eles depois se tornariam grandes nomes do mundo da arte. Também o icônico Griffiths Observatory, em Los Angeles, foi construído sob o WPA. 

    O escritor Taylor lembra de uma frase do Nelson Algren sobre o impacto do WPA em artistas e escritores: “Se não fosse pelo projeto, a taxa de suicídio teria sido muito maior. Ele deu nova vida às pessoas que pensavam que suas vidas haviam acabado “. 

    Empregos num período crucial 

    Nick Taylor (sem parentesco com o já citado David Taylor) escreveu sobre os programas gerais de empregos do WPA em seu livro ” American Made: The Enduring Legacy of the WPA — When FDR Put the Nation to Work.” (“Feito na América: o legado duradouro do WPA – Quando FDR colocou a nação para trabalhar”, em tradução livre). 

    “Ele [o programa WPA] de fato construiu o mundo que as gerações experimentaram após a Segunda Guerra Mundial”, disse Nick Taylor por telefone. 

    Se as atuais políticas de distanciamento social levarem a economia a uma recessão prolongada, pode ser necessário um programa econômico maior, de acordo com o escritor. “Na medida em que o governo gasta dinheiro em infraestrutura, deve antecipar quem seremos quando isso acabar”, opinou, enfatizando a necessidade de ver esses tipos de programas não como gastos, mas como investimentos. 

    Hoje, esses programas necessários podem incluir qualquer coisa, como acesso à banda larga e rede elétrica, sistemas de votação e projetos de mídia social. “Precisamos pensar como será a vida quando emergirmos do distanciamento social e do que precisaremos”, falou. 

    Tais programas podem ser adaptados por setor às habilidades individuais de cada pessoa. Observando um comentário da época do New Deal em seu livro, ele disse: “Não faz sentido transformar um bom violinista em um mau escavador”. 

    Membros do Federal Writers’ Project contribuíram para a série American Guide
    Membros do Federal Writers’ Project contribuíram para a série American Guide, um conjunto de guias culturais escritos localmente para cidades dos EUA
    Foto: Archive.org/Perlinger Library/Houghton Mifflin Co.

    Estímulo atual é diferente 

    Não está claro quanto tempo pode durar uma recessão econômica trazida pelo coronavírus. Mas já é tempo de pensar em como seria um novo programa nacional de artes. 

    Até o momento, o Congresso dos EUA respondeu à crise aprovando a CARES Act, uma lei de estímulo econômico de US$ 2 trilhões, o maior pacote de ajuda na história dos EUA, assinada pelo presidente Donald Trump em 27 de março. 

    A lei tem vários componentes principais, incluindo verificações diretas de estímulo a indivíduos, extensão de benefícios de desemprego, subsídios para pequenas empresas e empréstimos à indústria. 

    Uma regra essencial para os artistas foi a extensão dos benefícios de desemprego para autônomos que declaram imposto pelos formulários 1099 do IRS. Muitos artistas independentes, que provavelmente serão os mais afetados por uma economia em crise, se enquadram nessa categoria tributária e, portanto, são elegíveis para benefícios. 

    “Os autônomos independentes não são tradicionalmente incluídos no estímulo”, disse Jamie Bennett, diretor executivo da organização sem fins lucrativos ArtPlace America. A inclusão deles nesse benefício já representa um grande passo à frente, ajudando todos, como guitarristas de blues, artistas visuais e motoristas de Uber. 

    “Foram os artistas que inventaram a gig economy (a economia alternativa)”, explicou Jamie Bennett, observando que as raízes desse termo se referem aos músicos de jazz que tocam em shows. 

    Apesar de algumas boas notícias sobre o envio de cheques de estímulo individuais até meados de abril e a expensão dos benefícios de desemprego, as artes são particularmente vulneráveis às diretrizes de distanciamento social.

    "Seus olhos viam Deus", de Zora Neale Hurston
    Zora Neale Hurston trabalhou em seu romance “Seus olhos viam Deus” enquanto trabalhava no Federal Writers ‘Project
    Foto: Coleção do Museu Nacional Smithsonian de História e Cultura Afro-Americana

    “A grande maioria das artes e da cultura é consumida pessoalmente com outras pessoas”, detalhou Bennett, explicando que um renascimento artístico pós-pandemia terá que ser ampliado lenta e cuidadosamente. Começaria com pequenos teatros ou galerias, quando as autoridades de saúde pública derem sinal verde, e a sociedade só mais tarde voltaria a encher grandes arenas para shows de rock e eventos esportivos. 

    “Não vamos apertar um botão e fazer com que as pessoas voltem imediatamente a sentar em um teatro de 1.200 lugares”, disse ele. “Isso exigirá uma estratégia de 18 meses”. 

    Enquanto isso, as instituições de artes precisarão reforçar as ofertas virtuais e acreditar que, embora seja valioso, visitar um museu ou um assistir a uma sinfônica por meio de tecnologias como realidade virtual ou cinema não substituirá a alegria de visitar esses lugares. “Não sou aquele tipo que se preocupa com o fato de a tecnologia substituir a experiência ao vivo”, confessou Bennett. 

    Visitas virtuais a museus, cheques de auxílio-desemprego e auxílio direto são soluções-tampão úteis a curto prazo. Mas ainda estão aquém do papel ativista que o governo desempenhou na criação de trabalhos artísticos há quase um século. 

    Mesmo assim, por enquanto, essas medidas podem ser a única coisa nas mãos de artistas e instituições de arte. 

    Governo pode ajudar 

    A recessão do coronavírus tem raízes financeiras diferentes da Grande Depressão, e estimular a economia pode não mudar o fato de que alguns trabalhos simplesmente não existirão a pandemia não é controlada. Mas podemos pelo menos confiar nos órgãos públicos e nas políticas criadas no início do New Deal e em uma série de programas da sociedade civil que não estavam disponíveis na Depressão. 

    “A Fundação Nacional para as Artes não existia na década de 1930″, lembrou Taylor. “Não precisamos começar do zero, como o Federal Writers’ Project fez”. Taylor conta que programas como o American Journalism Project, que emprega recém-formados em jornais locais de todo o país, carregam o espírito do Federal Writers’ Project. Um programa do século 21 de artistas “não precisaria se parecer com o grande programa monolítico da WPA”, opinou. 

    Um raio de esperança: na semana passada, o Getty Trust também anunciou um fundo de ajuda de US$ 10 milhões a ser liberado em valores que variam de US$ 25 mil a US$ 200 mil pela California Community Foundation. Essas doações sustentariam instituições de artes pequenas e médias. 

    Jamie Bennett, da ArtPlace America, disse que os subsídios em bloco para o desenvolvimento de trabalhos comunitários provavelmente seriam uma maneira fundamental de ajudar agências e organizações que podem empregar artistas. Isso seria feito através de projetos como campanhas de saúde pública, vitais para manter a sociedade unida diante da pandemia. 

    Pintura de Mark Rothko durante seu tempo empregado pela WPA
    O pintor Mark Rothko, que ficou conhecido por suas pinturas de campo coloridas, criou essa representação de uma entrada do metrô durante seu tempo empregado pela WPA
    Foto: Reprodução/arthive.com

    Bálsamo em tempos difíceis 

    O médico Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e destaque da força-tarefa de resposta ao coronavírus do governo dos EUA, disse a Sanjay Gupta, da CNN, que estava preocupado com a forma como essa pandemia afetaria a psique do país. 

    “Dá para ouvir isso na modulação da voz das minhas filhas quando falo com elas por telefone”, disse Fauci. “É algo que ficará gravado na personalidade de nossa nação por muito tempo. Acho que haverá uma síndrome de estresse pós-traumático subliminar que todos vamos enfrentar”, concluiu. 

    Enquanto quase todo mundo no planeta está sentindo alguma versão do que as filhas de Fauci sentem, é improvável que todos possamos fazer terapia para resolver algumas das emoções complexas. Os artistas poderiam ajudar nesses traumas de maneiras que os profissionais de saúde talvez não possam. 

    “A arte lembra que você pertence a outras pessoas e ajuda a construir uma identidade baseada na comunidade compartilhada”, disse Deana Haggag. “Quando terminarmos essa crise, precisaremos de arte, religião e também de esportes. Não sei como nos recuperamos do estresse pós-traumático coletivo disso”, disse Haggag. “Acho que precisamos ficar juntos.” 

    Como muitos aspectos da economia, como restaurantes, viagens e esportes, as artes estão restritas de uma forma nunca vista. Embora a situação seja terrível, ela também alimenta diretamente as novas formas de expressão criativa que inevitavelmente devem advir do distanciamento social. 

    Hoje, manter a expressão pessoal — e a cura — vivas pode implicar investimentos para expandir a arte e seu significado em nossas vidas, seja através da escrita, dos videogames ou da realidade virtual. 

    “Uma das coisas que acho fascinante sobre a condição humana é que, sob quaisquer circunstâncias, os seres humanos criam”, lembrou Bennett. “Ainda não descobrimos condições nas quais nós humanos deixamos de ser criativos”.