Publicidade

Coluna no GLOBO

Mesmos erros na saúde e na doença

O presidente usou até a sua infecção pelo novo coronavírus como parte da campanha de desinformação que vem mantendo desde o início desta pandemia. Jair Bolsonaro tem obsessão pelos seus erros, fica com eles contra toda a evidência factual e científica. Em nenhum momento entendeu qual é o papel do presidente nesta crise, qual é a força do exemplo e a função da representação. Ontem foi apenas mais um dia em que ele mostrou toda a sua coleção de perigosos equívocos. A única diferença é que o seu exame deu positivo para o novo coronavírus.

Quando começou a ter sintomas, o presidente deveria ter se afastado de qualquer atividade presencial. Esse é o primeiro movimento do princípio da precaução. Viajou para Santa Catarina, foi à embaixada americana, carregou ministros militares e civis para essa comemoração, abraçou o embaixador. Na segunda-feira, manteve contato com vários ministros. E já estava tendo febre. Entre eles, o único que tem o hábito de usar máscara é o da Economia, Paulo Guedes. Espero que a tenha usado. Bolsonaro, seu governo e seus seguidores tratam a falta de uso de máscara como um manifesto, como uma demonstração de coragem. Ele continuou com a mesma atitude imprevidente apesar de já estar com os primeiros sintomas.

Bolsonaro não entendeu a primeira lição dos médicos nesta pandemia: a preocupação de cada pessoa consigo mesma é uma forma de ter cuidado em relação aos outros. Não contrair a doença e não ser o vetor, esses são dois objetivos interligados. A cabeça dele é impermeável a muita coisa, como se vê nesta pandemia. Ele continua dizendo que quem tem menos de 40 anos não tem problema, e que as crianças deveriam voltar às aulas. Isso é não entender a dinâmica do contágio. Cada paciente, mesmo que tenha a forma branda da doença, pode contaminar outra pessoa cujo organismo tenha maior vulnerabilidade.

Ele insistiu ontem na falsa versão sobre o Supremo Tribunal Federal. Disse que o STF decidiu “que essas medidas de isolamento, entre outras, seriam privativas de governadores e prefeitos”. Disse que “o presidente da República passou a ser um órgão (sic) que repassava dinheiro”. Mais adiante, nessa mesma declaração em que comunicou a alguns jornalistas que estava doente, disse: “eu fui alijado de tomar decisão no tocante ao tipo de isolamento.” É falso, o Supremo não o destituiu de suas obrigações e poderes de presidente. Ele tem usado a repetição dessa mentira como parte da sua estratégia de fugir à responsabilidade imposta pela presidência.
Bolsonaro comparou a doença a uma chuva, que pode molhar todo mundo, fez propaganda da hidroxicloroquina usando a si mesmo como exemplo, e emprestando a ela efeito quase milagroso. Disse que tomou e “poucas horas depois já estava me sentindo muito bem”. De noite, postou um vídeo tomando a terceira dose do remédio.

Afirmou que o Brasil é um país continental, com diferenças no clima no Norte e no Nordeste em relação ao Sul. “O vírus se dá melhor em climas mais frios.” Isso já foi derrubado pelos fatos. O presidente da República não sabe o que aconteceu em Manaus? O que aconteceu em Fortaleza? Em várias cidades do Norte e do Nordeste? Disse que houve um “superdimensionamento” da doença, mesmo diante da terrível realidade de 66 mil mortos.

Repetiu todos os seus erros de avaliação, análise e comportamento que demonstrou desde o começo da pandemia. Ele repetiu seus equívocos de autopercepção.

— Eu sou presidente da República e estou na frente de combate. Eu não fujo à minha responsabilidade e nem me afasto do povo, eu gosto de estar no meio do povo — disse Bolsonaro.

Não é verdade. Ele gosta apenas de estar entre os que o apoiam, os que gritam “mito”. Ele fugiu da frente de combate, do lugar onde realmente se luta contra o avanço da doença. Bolsonaro fugiu à sua responsabilidade de governante de um país que é o segundo em número absoluto de mortes. Nunca encorajou os médicos e enfermeiros, eles sim na frente de combate, nunca dirigiu palavras de sentimento aos enlutados. Ele chegou ao ponto de cometer crime, como no dia em que estimulou pessoas a invadirem hospitais.

Ao contrair o Sars-CoV-2, Bolsonaro poderia ter tido um momento de reflexão e de correção de rota. Mas ele repetiu os mesmos desatinos que tem cometido desde o início desta pandemia, que nos atinge de forma tão dolorosa.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)

Leia também