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Juntos, vocês podem resgatar a alma de nossa nação, diz John Lewis em artigo para a posteridade

'Embora eu não esteja mais aqui, peço que responda ao chamado mais alto do seu coração e defenda o que você realmente acredita', escreve ele
John Lewis, congressista americano e líder da luta pelos direitos civis e igualdade racial nos Estados Unidos Foto: Mark Makela / The New York Times
John Lewis, congressista americano e líder da luta pelos direitos civis e igualdade racial nos Estados Unidos Foto: Mark Makela / The New York Times

Mesmo que meu tempo aqui tenha chegado ao fim, quero que saiba que nos últimos dias e horas da minha vida você me inspirou. Você me encheu de esperança sobre o próximo capítulo da grande História americana, quando usou seu poder para fazer a diferença em nossa sociedade. Milhões de pessoas motivadas simplesmente pela compaixão humana impuseram um fim ao fardo da segregação. Ao redor do país e do mundo, você pôs de lado raça, classe, idade, língua e nacionalidade para exigir o respeito à dignidade humana.

Foi por isso que tive que visitar a Black Lives Matter Plaza em Washington, apesar de ter ido parar no hospital no dia seguinte. Eu só tinha que ver e sentir por mim mesmo que, depois de muitos anos de testemunho silencioso, a verdade ainda está avançando.

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Emmett Till foi o meu George Floyd. Ele foi meu Rayshard Brooks, Sandra Bland e Breonna Taylor. Ele tinha 14 anos quando foi morto, e eu apenas 15 anos, na época. Jamais esquecerei o momento em que ficou tão claro que poderia facilmente ter sido eu. Naqueles dias, o medo nos constrangia como uma prisão imaginária, e os pensamentos preocupantes da potencial brutalidade cometida por nenhuma razão compreensível eram as grades.

Embora estivesse cercado por dois pais amorosos, muitos irmãos, irmãs e primos, o amor deles não poderia me proteger da opressão profana que esperava do lado de fora desse círculo familiar. Uma violência descontrolada e irrestrita e o terror sancionado pelo governo tinham o poder de transformar um simples passeio até a loja para comprar alguns doces ou uma inocente corrida matinal por uma estrada vazia em um pesadelo.

Se quisermos sobreviver como uma nação unida, precisamos descobrir o que se enraíza tão facilmente em nossos corações que poderia roubar da Igreja Mãe Emanuel, na Carolina do Sul, seus melhores e mais brilhantes membros, atirar no público distraído em um show em Las Vegas, e sufocar até a morte as esperanças e sonhos de um violinista talentoso como Elijah McClain.

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Como muitos jovens de hoje, eu estava procurando uma saída, ou, como alguns poderiam dizer, uma entrada, e então ouvi a voz do Dr. Martin Luther King Jr. em um rádio antigo. Ele estava falando sobre a filosofia e a disciplina da não violência. Disse que todos somos cúmplices quando toleramos a injustiça. Disse que não basta dizer que isso vai melhorar a cada dia. Disse que cada um de nós tem uma obrigação moral de se levantar, erguer sua voz e se manifestar. Quando você vê algo que não está certo, você deve falar. Você deve fazer alguma coisa. Democracia não é um estado. É um ato, e cada geração deve fazer sua parte para ajudar a construir o que chamamos de Comunidade Amada, uma nação e sociedade mundial em paz consigo mesma.

Pessoas comuns com uma visão extraordinária podem resgatar a alma dos Estados Unidos, se envolvendo no que chamo de bons problemas, problemas necessários. Votar e participar do processo democrático são fundamentais. A votação é o agente de mudança não violenta mais poderoso que existe em uma sociedade democrática. Você deve usá-lo, porque não ele é garantido. Você pode perdê-lo.

Você também deve estudar e aprender as lições da História, porque a humanidade está envolvida nessa luta existencial dilacerante há muito tempo. Pessoas de todos os continentes estiveram no seu lugar, décadas e séculos antes de você. A verdade não muda, e é por isso que as respostas elaboradas há muito tempo podem ajudá-lo a encontrar soluções para os desafios de nosso tempo. Continue a construir a união entre os movimentos que se estendem por todo o mundo, porque devemos deixar de lado nossa disposição de lucrar com a exploração de outros.

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Embora eu possa não estar mais aqui com você, peço que responda ao chamado mais elevado do seu coração e defenda o que realmente acredita. Na minha vida, fiz tudo o que pude para demonstrar que o caminho da paz, do amor e da não violência é o caminho mais excelente. Agora é sua vez de deixar a liberdade soar.

Quando os historiadores pegarem suas canetas para escrever a História do século XXI, digam que foi a sua geração que finalmente pôs fim ao fardo pesado do ódio e que a paz finalmente triunfou sobre a violência, a agressão e a guerra. Por isso, eu lhes digo: andem com o vento, irmãos e irmãs, e deixem o espírito de paz e o poder do amor eterno ser o seu guia.

*John Lewis foi um líder dos direitos civis, da luta pela igualdade racial nos Estados Unidos e congressista americano, morto no dia 17 de julho deste ano. Ele escreveu este artigo pouco antes de sua morte e pediu para que fosse publicado no dia de seu enterro.