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Brasil Coronavírus

UFRJ investe em pesquisa para ter a vacina brasileira contra a Covid-19

Laboratório liderado por Amilcar Tanuri investe em uma plataforma tradicional e com vanguarda para ter o imunizante
Laboratórios na UFRJ investem na pesquisa para o combate a Covid-19 Foto: Marcia Foletto
Laboratórios na UFRJ investem na pesquisa para o combate a Covid-19 Foto: Marcia Foletto

RIO — Às vésperas de seu centenário, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que completa 100 anos no próximo dia 7, apresenta uma plataforma inédita e totalmente nacional de desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus. Ela é fruto do casamento da tradição com a vanguarda.

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A nova plataforma combina a forma mais antiga e reconhecidamente eficiente de imunização, a realizada por meio de vírus vivos atenuados, a mecanismos de segurança gerados por engenharia genética, por Crispr/Cas. Esse é o nome do método de edição de genes que tem revolucionado a biologia e já foi usado em terapias experimentais com seres humanos.

À frente do desenvolvimento da nova plataforma de vacina para a Covid-19, o professor titular da UFRJ, Amílcar Tanuri, chefe do Laboratório de Virologia Molecular, afirma que é necessária uma abordagem múltipla contra o coronavírus e de um imunizante robusto.

— Precisamos de várias estratégias porque, em primeiro lugar, há muito a se descobrir sobre a imunidade contra o Sars-CoV-2. Não se sabe, por exemplo, por quanto tempo dura a proteção dada por anticorpos e há incógnitas sobre a resposta celular, que se acredita ser essencial para proteger uma pessoa da Covid-19. É necessário um leque de opções de vacinas potentes e seguras, pois enfrentamos um vírus que ainda não é bem conhecido — explica Tanuri.

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Além disso, ter uma tecnologia brasileira é uma questão de soberania, e estratégica para o controle de pandemias, acrescenta ele. Destaca ainda o papel da universidade na geração de conhecimento e na formação de profissionais de alta qualificação.

— Todas as vacinas que estão vindo são estrangeiras. Há uma brasileira em pesquisa pré-clínica da Fiocruz/Butantan, com vetor viral replicante. Esperamos que a nossa, totalmente inovadora, seja uma contribuição brasileira à vacinologia. Isso tem importância não só no que diz respeito ao domínio do conhecimento quanto ao acesso a recursos. A falta de insumos para testagem nesta pandemia já deixou evidente o quão gravemente vulneráveis e dependentes somos do exterior — diz Tanuri.

O grupo da UFRJ é integrado por cientistas do Instituto de Biologia e o de Microbiologia.  A essência da vacina está na criação de uma cepa (variante) do Sars-CoV-2 atenuada.

Essa estratégia é mais tradicional em imunização e usada com sucesso, por exemplo, nas vacinas contra pólio (Sabin), caxumba, varíola (a única doença infecciosa totalmente erradicada graças à vacinação), coqueluche e febre amarela.

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O vírus atenuado é similar ao selvagem (como os cientistas se referem a um vírus em circulação). Porém, não causa doença. A atenuação, isto é, a incapacidade de provocar adoecimento, é obtida por meio de centenas de replicações do vírus em laboratório, cultivado em células de espécies não relacionadas, como hamsters.

Após tantas passagens, o vírus se torna ineficiente para causar doença e se multiplica pouco dentro do hospedeiro original. Ele enfraquece em todos os sentidos. Mas Tanuri salienta que o vírus atenuado mantém o potencial necessário para proporcionar uma resposta mais eficaz do sistema imunológico.

Virus atenuado

Muitas das 234 vacinas em desenvolvimento no mundo atuam contra a proteína S do coronavírus, essencial para que ele infecte as células humanas. Porém, Tanuri acrescenta que outras proteínas são importantes no processo de formação da resposta imune do organismo.

— A vacina atenuada tem o vírus todo e, por isso, estimula a resposta mais completa e, possivelmente, mais robusta e prolongada — diz ele.

Parte da inspiração para a nova plataforma vem da análise de vacinas de uso veterinário contra coronavírus que infectam cães, gatos, galinhas e outros animais domésticos e são conhecidos há décadas.

Há cinco doenças de importância veterinária causadas por coronavírus: bronquite infeciosa de galinhas (IBV), gastroenterite contagiosa de porcos (TGEV), coronavirose canina (CCV), coronavirose bovina (BCV) e peritonite infeciosa felina (FIPV).

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Coronavírus têm se revelado alvos notavelmente difíceis para a imunização. De todas as vacinas veterinárias contra eles, a única que se mostrou eficiente é feita com vírus atenuados e protege galinhas.  E uma experimental começa a apresentar bons resultados em cães.

— Analisamos esses trabalhos e estamos convencidos de que essa é a melhor estratégia — enfatiza o virologista.

Para garantir que o coronavírus atenuado seja mesmo incapaz de adoecer alguém, os pesquisadores da UFRJ desenvolveram uma forma de desarmá-lo com a retirada de genes responsáveis a proteínas ligadas à patogenicidade. São proteínas chamadas de Orfs. E é aí que entra o método de Crispr/Cas, que corta com uma espécie de tesoura de proteínas trechos específicos de uma sequência genética.

Com a Crispr/Cas, o grupo da UFRJ cortará o genoma do coronavírus. As primeiras tesouradas gênicas extirparão do vírus vacinal os genes Orf3 e Orf8. Estes são ligados a proteínas virais que impedem as células humanas de produzir interferon contra o coronavírus. Sem elas, o vírus pode infectar, mas não causa doença, explica a vice-diretora do Instituto de Microbiologia, Luciana Costa, integrante do projeto.

Também por meio da mesma técnica de engenharia genética, os cientistas implantarão no vírus vacinal uma trava de segurança. Esta é um “gene suicida”, extraído do vírus do herpes, que fará o coronavírus suscetível ao antiviral aciclovir. Com ele, qualquer efeito indesejado da vacina pode ser suprimido com o antiviral.

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Outra garantia de segurança será dar ao vírus vacinal uma “carteira de identidade”, para a produção da vacina. Sairá um gene do sistema Orf e entrará em seu lugar outro de bactéria resistente ao antibiótico blasticidina.

Luciana explica que os vírus vacinais serão selecionados por meio da blasticidina, isso potencialmente impedirá que vírus indesejados sejam usados.

A expectativa dos pesquisadores é obter financiamento para levar os estudos adiante. O trabalho não tem como avançar sem recursos específicos. Com eles, poderão em seis meses ter a cepa vacinal inativada e dentro de um ano, um protótipo para testes clínicos.

— O Sars-CoV-2 não irá embora e precisamos de estratégias. Além disso, essa mesma plataforma poderá ser empregada no desenvolvimento de vacinas contra outros patógenos emergentes. A pandemia de coronavírus mostrou ao mundo que precisamos estar preparados — frisa Tanuri.