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'Não compete a órgão estatal fazer dossiês contra quem quer que seja', diz Cármen Lúcia

STF julga ação que questiona a produção do dossiê pelo Ministério da Justiça contra servidores ligados a movimentos antifascistas
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) Foto: EVARISTO SA / Agência O Globo
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) Foto: EVARISTO SA / Agência O Globo

BRASÍLIA  — A ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta quarta-feira pela suspensão da produção de qualquer tipo de dossiê por parte do Ministério da Justiça sobre a vida pessoal e política de servidores públicos. Segundo a ministra, fabricar documento com esse tipo de informação é desvio de finalidade da atividade de inteligência do Estado.

— Nem a órgão estatal, nem sequer a particulares não compete fazer dossiês contra quem quer que seja, nem instaurar procedimentos de cunho inquisitorial. No Direito Constitucional, o uso ou abuso da máquina estatal para colheita de informações de servidores com postura contrária ao governo caracteriza sim desvio de finalidade, pelo menos em tese. Também não se demonstra legitimidade da atuação de órgão estatal de investigar e de compartilhar informações de participantes de movimento político, aqui chamado antifascistas, a pretexto de se cuidar de atividade de inteligência, sem se observar o devido processo legal — disse a ministra.

Está em julgamento uma ação da Rede Sustentabilidade que questiona a produção do dossiê pelo Ministério da Justiça contra servidores ligados a movimentos antifascistas. O partido pede ao STF a "imediata suspensão da produção e disseminação de conhecimentos e informações de inteligência estatal produzidos sobre integrantes do ‘movimento antifascismo’ e professores universitários". Em explicações enviadas à Corte, o Ministério da Justiça afirmou que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) não produz dossiês contra nenhum cidadão e não instaura "procedimentos de cunho inquisitorial".

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A secretaria foi apontada como autora de um relatório sigiloso sobre quase 600 servidores públicos da área de segurança identificados como integrantes do movimento antifascismo e opositores do governo do presidente Jair Bolsonaro. Cármen Lúcia rebateu a informação de que o Ministério da Justiça não tinha produzido o material.

— A pergunta é simples: existe ou não existe? Se existe e está fora dos limites constitucionais, isso é lesão a preceitos fundamentais. E se não existe basta dizer que não existe. Mas como eu li, na data de ontem, o que recebi foi o esclarecimento muito sincero do ministro da Justiça. O ministro não solicitou qualquer relatório, só teve conhecimento de sua possível existência pela imprensa. Não é dito ‘não é dossiê, não há relatório’. Não é dito. Não é conjectura, não é ilação, e não é interpretação. Como eu anotei, nas informações prestadas não há uma negativa peremptória, até porque o ministro disse que não sabia dos relatórios até a divulgação pela imprensa — alertou Cármen Lúcia.

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A ministra comparou a produção de documento sigiloso contra cidadãos à ditadura:

— O proceder de dossiês, pastas relatórios, informes sobre a vida pessoal dos cidadãos brasileiros sobre suas escolhas não é nova neste país, e não é menos triste termos que voltar a este assunto quando se acreditava que era apenas uma fase mais negra de nossa história.

Apenas Cármen Lúcia votou nesta quarta-feira. Outros nove ministros se manifestarão na sessão de quinta-feira. Celso de Mello está de licença médica e não participará do julgamento. Antes do voto da relatora, o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que o dossiê na verdade é um relatório de inteligência para evitar riscos à segurança pública, e não uma investigação .

— A atividade de inteligência antecipa cenários de risco. O Ministério Público não admite que governos espionem opositores políticos. E isso precisa ficar claro. Relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal _ disse Aras, ao defender a legalidade do dossiê. _ Quando pessoas armadas se reúnem em protestos políticos, a segurança pública pode ser colocada em risco. Relatórios de inteligência antecipam cenários de risco, não são investigações criminais — concluiu.

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O advogado-geral da União, José Levi do Amaral Júnior, também defendeu a legalidade do documento:

— É informação, não é investigação, e não há dados para além de informações públicas — afirmou, completando: — A União, aí incluído o Ministério da Justiça, rejeita toda e qualquer forma de autoritarismo ou de totalitarismo, incluindo o fascismo. Nosso país é uma democracia, uma democracia vibrante, plural. Fosse uma autocracia, não estaríamos em meio a um debate livre como estamos.