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Cultura

Maior biografia já feita de Jacob do Bandolim revela um careta revolucionário

'Jacob do Bandolim — um coração que chora' aponta as muitas inovações — e contradições — do gênio musical que entrou para a História como um irascível guardião das tradições do choro
Jacob do Bandolim e seus músicos Foto: Instituto Jacob do Bandolim / Divulgação
Jacob do Bandolim e seus músicos Foto: Instituto Jacob do Bandolim / Divulgação

RIO - Do mau humor de Jacob do Bandolim, nem mesmo um iniciante Paulinho da Viola escapou. Tinha ele 16 anos quando chegou para o mestre do choro, grande amigo do seu pai — o violonista César Faria — e disse: “Quero te mostrar uma coisa que estou fazendo, um solo.” Com muita sinceridade, depois de ouvir parte da execução, Jacob fuzilou: “Paulinho, não me leva a mal não, mas isso que você está compondo aí eu já fazia quando iniciei minha carreira e não tem sentido nenhum.”

“Foi o modo que encontrou para orientar o menino a buscar algo novo, diferente. Pelo visto, conseguiu”, escreve o jornalista Gonçalo Junior em “Jacob do Bandolim: um coração que chora”, mais completa biografia já feita sobre o músico, reconhecido como o maior nome do choro pós-Pixinguinha (seu grande ídolo). A edição, de 672 páginas, chega mês que vem às livrarias pela editora Noir.

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Uma espécie de serial biographer , com livros sobre o compositor Assis Valente (“Quem samba tem alegria”) , o mito dos quadrinhos pornôs Carlos Zéfiro (“O deus da sacanagem”) e o Bandido da Luz Vermelha (“Famigerado!”), entre outros, Gonçalo se dispôs desta vez a raspar a capa de antipatia que revestiu Jacob. E a apontar as inovações — e contradições — de um gênio musical que passou à História como um irascível guardião das tradições do choro.

— Tentei fazer uma revisão dos estereótipos que o próprio Jacob criou. Ele mesmo se complicou nesse departamento de ser um cara tradicionalista, conservador, quando na verdade estava longe disso. É impressionante como ela vai experimentando e inovando em todos os LPs dele a partir de 1959 — conta o autor. — E não tinha nada que ele falasse que não tivesse um argumento sólido, de quem conhecia muito de música. Não dava para discutir com Jacob simplesmente ficando contra ele.

Por João Máximo: As contradições de Jacob do Bandolim, um gênio difícil

Nascido como uma espécie de dívida de Gonçalo com seu próprio pai, morto em 2015 e um grande apreciador do bandolinista, “Um coração que chora” joga luz pela primeira vez sobre aspectos da vida de Jacob que ajudam a entender sua obsessão pela excelência artística e seu apreço pela vida familiar. O livro traz detalhes de algo pouco conhecido que o músico tentou esconder por toda vida: a polonesa Raquel Pick, sua mãe, foi prostituta e cafetina no Rio do começo do século XX.

— Foi um trabalho de juntar pecinhas — conta o biógrafo. — Sergio Prata, vice-presidente do Instituto Jacob do Bandolim, já tinha escrito um artigo com a afirmação de que a mãe dele era uma polaca. Depois, o cardiologista que abrigou Jacob em Brasília me contou mais sobre uma conversa que eles tiveram a respeito desse assunto. E mais tarde encontrei uma pesquisa sobre as polacas no Rio indicando que a mãe dele tinha sido diretora de uma associação que ajudava prostitutas.

Jacob renegou sua origem judaica e se converteu ao catolicismo, o que azedou de vez sua relação com a mãe (os dois ficaram mais de 12 anos sem se falar). Casou-se com Adylia, a mulher que amava, teve dois filhos e, certo dia, decidiu não se submeter mais às incertezas da carreira artística. Fez concurso para escrivão da 11ª Vara Criminal do Rio — emprego que manteve até ser aposentado por problemas cardíacos, pouco antes de morrer (em 1969, aos 51 anos).

Mas Jacob Pick Bittencourt foi, de muitas maneiras, um homem à frente do seu tempo, como destaca a biografia. Tanto em termos de composições (“Noites cariocas”, “Doce de coco”, “Assanhado”, “O voo da mosca”) quanto na forma instrumental dada ao estilo, que pouco se alterou desde então. Ele introduziu o som das gafieiras e o acordeom no choro, inventou instrumentos (como o vibraplex, um violão tenor dinâmico acoplado a uma caixa de som Leslie, que dava o som cheio de vibrato dos órgãos Hammond) e que explorou muitas possibilidades do estúdio de gravação.

— Jacob experimentava de todas as formas as novas tecnologias. O microfilme, por exemplo, surgiu durante a Segunda Guerra, e poucos anos depois ele já o usava — conta Gonçalo, lembrando que ele microfilmou 400 partituras e as carregava dentro de uma caixa de pasta de dente, para quando fosse se apresentar em São Paulo.

Purista, acima de tudo

Músicos e críticos idolatravam sua sonoridade sem igual e seu virtuosismo elegante. Com esse prestígio e um trabalho que lhe dava segurança financeira, Jacob abdicou de fazer discos que vendessem muito mas comprometessem sua qualidade musical. E tinha no popularíssimo cavaquinista Waldir Azevedo (de “Brasileirinho”) o seu grande rival, alguém que ele via como “o grande desvirtuador do choro”.

Nacionalista ferrenho, o bandolinista detestava o jazz – e discordava frontalmente de quem fazia paralelos desse estilo com o choro, por causa da cultura da improvisação. Dizia que a bossa nova viera somente para jogar uma pá de cal no samba – e só tocou “Chega de saudade”, marco inaugural da bossa, porque Tom Jobim lhe forneceu o seu arranjo original para a canção, mais próximo do samba.

Detalhe da Capa do livro "Jacob do Bandolim - um coração que chora", de Gonçalo Junior Foto: Reprodução
Detalhe da Capa do livro "Jacob do Bandolim - um coração que chora", de Gonçalo Junior Foto: Reprodução

Jacob elegeu os tropicalistas como seus algozes, desferindo ferozes ataques a Gilberto Gil (“o verdadeiro Gilberto Gil que eu conheço é o autor do samba ‘Mancada’, não aquele sujeito barbado, que agora faz parte da Tropicália”), Caetano Veloso (que, segundo Jacob, “não sabe se é homem ou macaco”) e até mesmo o maestro Rogério Duprat. “Estou até com a ideia de representar contra ele na Ordem dos Músicos do Brasil, por uma questão de falta de ética”, ameaçou o bandolinista, depois de ver a capa do LP “Tropicalia ou Panis et Circencis” (1968) em que Duprat posou, provocativamente, como se estivesse bebendo chá de um penico.

No casarão do choro

Com o primeiro dinheiro que juntou, Jacob do Bandolim construiu uma ampla casa em Jacarepaguá para abrigar a família, a coleção de partituras e gravações de choro (que, depois de idas e vindas, passaram aos cuidados do Instituto Jacob do Bandolim). Lá fazia lendários saraus para os amigos, mas não hesitava em bani-los dos encontros caso se comportassem mal ou destratassem outros convidados.

— Ele respeitava muito os humildes, ajudava a quem podia e não aceitava que ninguém se colocasse por cima do outro. E, quando brigava, sai de baixo! Ele tinha uma capacidade absurda de articulação, improvisava discussões, trocadilhos e ironias e tinha umas sacadas muito boas — diz Gonçalo.

Durante a pesquisa para o livro, o jornalista descobriu que o músico começou a andar armado por causa do trabalho: frequentemente, ele tomava depoimentos de investigados.

— Mas jamais atirou em alguém, frequentou delegacia ou teve acesso à prisão. O trabalho dele era apenas na vara criminal — pondera o autor.

De qualquer forma, ficou a (má) fama. Em 1979, Gilberto Gil disse à revista “Status”: “Jacob do Bandolim era chefe de polícia, um homem que prendia gente, que talvez tenha até batido em gente. Mas, quando pegava no bandolim, ele chorava. A arte tira as pessoas do convencional e isso não é um privilégio do bom nem do ruim, da esquerda ou da direita... O encantamento é para todos, da mesma forma que Deus”.

A viúva, Adylia, retrucou na sequência: “O escrivão criminal do Tribunal de Justiça Jacob Pick Bittencourt jamais foi chefe de polícia, como inveridicamente vossa senhoria afirmou. E se o tivesse sido, saiba que exerceria o cargo com o mesmo zelo e honestidade com que tocava seu bandolim”.

De fato, com 1,82m de altura e voz imponente, o bandolinista hipocondríaco e de coração fraco (que o mataria, no terceiro infarto seguido) não precisava bater: bastava um olhar enviesado e sua fama de implacável para se impor. Já a figura convencional, típica de um barnabé, camuflava um lado que o artista Jacob exercitava na surdina, com muita perícia, ajudado pelos encantos do seu toque no bandolim: a do sedutor, de muitos casos extraconjugais.

— Diziam que os olhos verdes de Jacob faziam muito sucesso com as mulheres. Aí eu fui verificar. E realmente tem um disco de 10 polegadas, de 1955, em que ele aparece em close, de lado, no qual dá ver a cor daqueles olhos... — diverte-se Gonçalo Junior.

“Jacob do Bandolim — um coração que chora”

Autor: Gonçalo Junior. Editora: Noir. Páginas: 672. Preço: R$ 119.