Saúde Coronavírus

Falta do IFA e de insumos para a vacina contra a Covid-19 expõe a fragilidade do setor farmacológico no Brasil

País só fabrica 5% dos ingredientes ativos dos medicamentos e imunizantes que produz para consumo final
Ampolas da vacina Coronavac em linha de produção no Instituto Butantan, em São Paulo Foto: AMANDA PEROBELLI / REUTERS
Ampolas da vacina Coronavac em linha de produção no Instituto Butantan, em São Paulo Foto: AMANDA PEROBELLI / REUTERS

RIO e SÃO PAULO — Há coronavírus de sobra de Norte a Sul do Brasil, um dos epicentros da pandemia, segundo país em número de mortos, terceiro em infectados e atrasado na vacinação. Mas faltam vírus nas fábricas nacionais de vacinas. Não há IFA, a sigla para ingrediente farmacológico ativo, para produzir as vacinas de Covid-19. E o IFA, nesse caso, nada mais é do que vírus.

Faça o teste: Qual é o seu lugar na fila da vacina?

E não há IFA porque o Brasil depende de vírus e outros insumos importados, dos mais básicos aos mais sofisticados. Também precisa de transferência de tecnologia e carece de instalações adequadas para produzir vacinas virais em grande escala, dizem especialistas. Além disso, fracassou no planejamento de compras.

Leia mais: Por unanimidade, Anvisa libera segundo lote da vacina CoronaVac

A falta de vírus expôs a completa dependência do Brasil em insumos e tecnologias importados. Dependência que cientistas destacam ser uma ameaça não apenas à saúde pública, mas à segurança nacional, pois mostra uma extrema vulnerabilidade a insumos de outros países, em especial da China.

— O Brasil somou um problema crônico de falta de indústria com o problema agudo de falta de competência federal para planejar minimamente compras de insumos — afirma Maurício Lacerda Nogueira, professor de virologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP).

Veja: Com aprovação da Anvisa, novo lote de CoronaVac já pode ser distribuído para estados

Segundo representantes da área farmacêutica nacional, a situação é resultado da falta de investimento em tecnologia e inovação.

— Quando se conta também IFA de um modo geral, tanto para vacinas quanto para medicamentos, há 20 anos produzíamos 50% do IFA consumido aqui, e hoje só 5% — afirma Norberto Prestes, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos.

O Brasil tampouco já desenvolveu uma vacina para uso humano. E, apesar da pandemia, os 15 grupos que procuram desenvolver um imunizante contra o coronavírus receberam cerca de R$ 15 milhões do governo federal. Os EUA, por exemplo, colocaram US$ 1 bilhão apenas na vacina da Moderna.

Leia também: No primeiro lote da vacina da Covid, Rio cobrirá 20% do grupo prioritário

O país amarga dependência extrema não importa a tecnologia, observa o virologista Fernando Spilki. No caso da CoronaVac, o Butantan não tem condição de produzir o vírus inativado em grande escala. As doses entregues foram montadas no Brasil, mas o vírus veio da China.

Nação envasadora

Nas vacinas baseadas em adenovírus não replicante (AstraZeneca/Oxford, Jansen e Sputinik), assim como nas de mRNA (Pfizer/BioNTech e Moderna,) dependem de transferência de tecnologia.

— Somos envasadores de vacinas e de biotecnologia de forma geral. Tecnologia e insumos vêm de fora. A pandemia tornou dramático o que já era um problema — afirma o  presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, Flávio Fonseca, pesquisador do Centro de Tecnologia em Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Saiba mais: Irritado, Bolsonaro convoca ministros e cobra soluções para problemas na vacinação e em Manaus

No caso da CoronaVac, o IFA é o próprio coronavírus Sars-CoV-2 inativado, fabricado pela Sinovac. Ou seja, é corpo e alma da vacina.

Já a vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford, cuja produção ficou a cargo de BioManguinhos/Fiocruz, tem como IFA um adenovírus símio geneticamente modificado para carregar a sequência genética da proteína S do coronavírus.

Por enquanto, o país tem vacinado somente com a CoronaVac montada pelo Butantan com vírus vindos da China. Mas, se o estoque não for renovado, não haverá vacina porque o Butantan não tem um laboratório de nível de segurança 3 de escala industrial.

Fonseca explica que o Butantan consegue apenas combinar os vírus importados com adjuvantes, igualmente importados. O Butantan só deixará de depender da importação de matéria-prima da Sinovac quando for concluída a construção da nova fábrica do instituto. A obra foi iniciada em novembro de 2020, com previsão de entrega em dez meses.

Ameaça: Primeiro-ministro britânico diz que há evidências de que nova variante da Covid-19 causa maior mortalidade

Segundo Wilson Mello, presidente da InvesteSP, responsável pela captação de recursos da iniciativa privada para o projeto, o prazo é 30 de setembro. Mas a fábrica precisará de autorização da Anvisa para operar. Só aí virá a transferência de tecnologia, prevista no contrato com a Sinovac.

— Só teremos uma produção de vacinas 100% nacional no ano que vem e isso, se tivermos sorte — afirma Renato Kfouri, da  Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Setor estratégico

Fonseca diz que já passou da hora de o Brasil ser um desenvolvedor e produtor de insumos, e não principalmente um envasador, refém de importações.

Anvisa: Entenda como funciona o processo de registro de vacinas

— Mesmo com o atraso de anos de falta de investimento em imunizantes, poderíamos estar em situação melhor se tivéssemos planejado importações para insumos que obviamente todo mundo sabia que teriam altíssima demanda global — frisa Fonseca.

BioManguinhos/Fiocruz tem instalações para produzir a vacina da AstraZeneca/Oxford, pois não é necessário um laboratório de nível 3, sendo o 2 suficiente. A dificuldade está na tecnologia necessária para multiplicar o adenovírus não replicante. Como indica seu nome, ele não se multiplica no organismo. Foi geneticamente atenuado para dar segurança à vacina. Sem se replicar, não pode infectar e causar doença. Porém, isso impõe um desafio à sua produção em escala industrial.

Com Covid-19 em alta: Governo de SP adia volta às aulas para o dia 8 de fevereiro

Para fazer isso, explica Fonseca, é preciso cultivá-lo em culturas de células especiais, modificadas, que dão ao adenovírus as proteínas que ele não tem para se replicar. Mas Fiocruz depende da transferência de tecnologia da AstraZeneca.

Fonseca observa que esse tipo de tecnologia é dominado pela ciência brasileira há anos. No entanto, cada imunizante tem suas especificidades, protegidas por sigilo industrial. O mesmo desafio se aplica à Sputnik. Spilki lembra que o Brasil depende de importação até para meio de cultura de células, que tem 79 ingredientes, todos beneficiados pela China.

— O Brasil poderia fazer, mas não houve investimento. E, no caso da pandemia, temos baixo poder de barganha, se comparados a países ricos, que também importam insumos, mas têm elevado poder de compra e diplomacia — observa Spilki.

Segundo Prestes, a concorrência com a China e a Índia hoje é muito difícil, mas o país precisa ter uma política de estado para o setor, que olhe para questões estratégicas.

— A gente tem que, no mínimo, desenvolver capacidade tecnológica para, num momento de aperto como este, conseguir comprar a tecnologia e implementar ela aqui mais rapidamente — afirma.

Colaborou Giuliana de Toledo