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Cultura Música

'Não ter fevereiro em Santo Amaro, para mim, é negar a vida', diz Maria Bethânia

Cantora se prepara para primeira live e reflete sobre os impactos da pandemia em sua vida. como, por exemplo, não poder participar das celebrações religiosas anuais em sua terra natal
Maria Bethânia Foto: Jorge Bispo
Maria Bethânia Foto: Jorge Bispo

No próximo sábado, Maria Bethânia pretende fazer o de sempre: tirar um cochilo depois do almoço:

— Acho que sou a única cantora que, em dia de estreia, dorme após comer. Sou baiana, do Recôncavo (da cidade de Santo Amaro) , e mantenho essa tradição da sesta.

A estreia a que se refere é sua primeira live (com transmissão gratuita do Globoplay, às 22h) em 56 anos de carreira. O dia, apesar de vivido de forma simples, é carregado de simbolismo e comemorações. Foi no 13 de fevereiro de 1965 que ela subiu ao palco do show “Opinião”, no Rio, ao lado de Zé Keti e João do Vale, substituindo Nara Leão. Naquele momento, sua trajetória ganhou projeção nacional. Foi também num 13 do mesmo mês, em 2016, que desfilou na Mangueira como campeã do carnaval carioca com o enredo “Maria Bethânia: A menina dos olhos de Oyá”.

— É um dia especial para mim, muito grande, cheio de mistério e força — diz ela, aos 74 anos, em entrevista por áudio de WhatsApp, por onde chegou até a cantar um trecho de “O canto do Pajé”. — Mas vou proceder da mesma maneira que faço há 56 anos. Vida normal: me alimento, cuido de mim, descanso para chegar o mais inteira possível para fazer a apresentação. Sem festas, é uma apresentação.

Um show desafiador para a artista brasileira de relação mais visceral com o palco e com a plateia. Cantar num teatro vazio foi, inclusive, o que a deteve até agora, com quase um ano de pandemia, a se render ao formato de live.

— Realizo meu ofício com muita dramaturgia e com uma relação aguda com os presentes. Então, me imaginar fazendo uma coisa do jeito que sei e de que gosto, sem plateia, ficou um pouco difícil. Não senti verdade — conta. — Agora, aceitei porque aprendi muito com as lives que vi. Foi uma escola bonita.

O local escolhido para a apresentação é a Cidade das Artes, e a direção artística é de LP Simonetti, nome por trás das lives de Roberto Carlos, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Ivete Sangalo.

— Teremos Bethânia e quatro músicos — adianta ele. — Vamos jogar o telespectador para perto dela. Será uma transmissão clássica e com classe.

Para a cantora, os grandes mestres do formato são Teresa Cristina (“Fiquei muito comovida com a ideia inicial dela, achei encantadora, forte e corajosa”), Adriana Calcanhotto, Chico César e seu irmão, Caetano. Ela assistiu a todas as apresentações on-line dele e ainda deu sugestões no repertório.

No setlist da live de sábado, além de sucessos da carreira (“Negue”, “Olhos nos olhos”, “Onde estará o meu amor” e “Explode coração” estão cotadas para entrar), haverá também novidades do álbum “Noturno”, que sai este ano pela Biscoito Fino. Ele foi gravado em setembro, em apenas três semanas, único momento em que ela saiu de casa durante todo o ano de 2020.

— Não pensei que fosse ter coragem de me jogar num estúdio, um ambiente fechado, com pouca ventilação e ar-refrigerado. Mas foi um impulso grande — lembra. — Tinha um repertório inédito, e queria botar voz naquelas palavras. Fui com todas as proteções, todos foram testados semanalmente. Sei que isso não funciona como vacina, mas é um modo de se prevenir. Fiquei fechada numa caixinha de acrílico (risos) .

Música sobre tragédia

No novo álbum, Bethânia faz uma dedicatória antes de cada música. Numa das faixas, ela destina sua interpretação aos “indiferentes”. É em “2 de junho”, composição de Adriana Calcanhotto sobre a tragédia do menino Miguel. A morte do filho da empregada doméstica Mirtes Renata, que caiu do nono andar de um prédio de luxo em Recife quando estava sob os cuidados da dona da casa, Sari Corte Real, emocionou Adriana. A dor, transformada em versos, também abateu Bethânia.

— Eu quis cantar e fiz com meu coração muito comovido. Difícil colocar numa música um drama tal. Adriana conseguiu — diz, antes de refletir sobre o poder das manifestações culturais. — A arte tem nos sustentado nesse período. Por mais estranho que seja, é a única coisa em que quase podemos tocar. O resto é tão desvanecido, inseguro, sem chão.

As atribulações e incertezas desse momento histórico e singular atingiram Bethânia com força, ainda mais neste início de ano, quando ela costuma ir para sua terra natal participar das festividades religiosas. O documentário “Fevereiros” (2017), de Marcio Debellian, mostra como esse período é inspirador e potente para ela:

— Não ter fevereiro em Santo Amaro, para mim, é negar a vida. Não consigo levar numa razoável, quanto mais numa boa. Tem sido dificílimo.

Bethânia vai passando os dias e as horas como pode, relendo Fernando Pessoa e Eucanaã Ferraz, ouvindo blues do Mississipi, fazendo sessões de fisioterapia para compensar a parada no corre-corre dos shows (“o corpo ressente”, diz) e cuidando do jardim. Mas são os bordados que lhe dão mais prazer. Vira e mexe, quando dá na telha, para e borda. Não paisagens, frisa, mas textos e poemas.

— Sou uma pessoa muito caseira. Essa coisa de que falam: “Quando a gente puder se abraçar…” Eu não sou muito (assim) — admite. — Minha angústia é não ter a normalidade. Uma pessoa chegar para visitar, conversar, tomar uma cerveja ou uma água de coco. Não poder pegar um avião, passar um fim de semana em casa, na Bahia. Isso é uma prisão.

A violência da Covid-19 não abalou sua fé (ele é católica e candomblecista). O medo dela é o sofrimento, não a partida.

— Caetano diz que eu não tenho medo de morrer. Ele tem mais, se comparado a mim. Meu medo é sobre o que antecede a morte. Ainda mais nessa doença cruel, que tira o ar (respira fundo ao fim da frase) . É muito complicado. Eu sou filha do ar, de Iansã. Vacina, pelo amor de Deus!

É na imunização que ela aposta suas fichas para comemorar os 75 anos dia 18 de junho, em Santo Amaro. Se for “um projeto nacional abrangente”, quer assistir a uma missa na Igreja da Nossa Senhora da Purificação e depois se reunir com os irmãos no quintal da casa dos pais. Quando pensa na idade e no envelhecimento, gargalha e apenas diz:

— Temos dores e delícias, graças a Deus.

E ri mais uma vez, quando fala da importância do sexo e da paixão na vida de uma mulher de quase 75 anos:

— São fundamentais.