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Aprovação da vacina da Pfizer não resolve problema de curto prazo da falta de imunizantes no Brasil, dizem especialistas

Após registro permanente pela Anvisa, cientistas criticam resistência do governo federal ao fechar contrato com empresa americana
Agente de saúde prepara dose da vacina Pfizer-BioNtech no Clalit Health Services, em um ginásio da cidade israelense de Petah Tikva. Foto: JACK GUEZ / AFP
Agente de saúde prepara dose da vacina Pfizer-BioNtech no Clalit Health Services, em um ginásio da cidade israelense de Petah Tikva. Foto: JACK GUEZ / AFP

RIO - O anúncio, na manhã desta terça-feira, de que a vacina da Pfizer contra a Covid-19 recebeu registro permanente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) endossa que o imunizante é seguro e eficaz. A possibilidade de o produto se tornar efetivamente disponível na campanha de vacinação do Brasil, porém, ainda é incerta.

Caberia, agora, ao governo federal fechar o contrato com o laboratório e efetivar a compra de doses do imunizante. O Brasil já perdeu a oportunidade da primeira rodada de negociações, porém, não está claro quando a empresa poderá entregar um grande lote de doses neste momento.

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O problema logístico apontado anteriormente — a necessidade de uma cadeia de refrigeração para armazenar o imunizante da Pfizer — não deve ser empecilho. Especialistas apontam que o país tem, sim, estrutura para armazenar e aplicar as doses da vacina, ainda não disponíveis no Brasil.

A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo reforça que, agora, todas as condições regulatórias estão preenchidas para a compra da vacina da Pfizer, que cumpriu todos os requisitos obrigatórios, como estudo de fase 3 no país.

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— Com essa aprovação, o governo tem todas as condições de comprar a vacina. A questão que se coloca agora é o governo aceitar as normas contratuais, ter doses suficientes e ter as condições de armazenamento da vacina, que, ao meu juízo, são facilmente resolvíveis. Nunca aceitei que isso fosse um entrave no Brasil, uma vez que todas as capitais e grandes cidades têm condições de ter freezer a -80°C. Além disso, a iniciativa privada pode doar esse tipo de equipamento — afirma Dalcolmo.

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Com a aprovação da vacina da Pfizer pela Anvisa, a iniciativa privada poderia em princípio adquirir doses de vacina, o que depende ainda de decisão judicial a ser tomada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

A aquisição de doses por empresas preocupa alguns especialistas por poder acentuar ainda mais as disparidades no enfrentamento à pandemia. Roberto Medronho, professor de epidemiologia da UFRJ, ressalta que o registro anunciado nesta quarta-feira não muda em nada a vida da maioria da população, que depende do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ele ressalta que o governo não tem dado sinais de que compraria doses da Pfizer e que, com isso, apenas a parcela da população com maior renda poderia ter acesso ao imunizante.

— Temos uma vacina com 95% de eficácia global, que tem se mostrado muito segura, já aplicada em milhões de pessoas e que está demonstrando, nos locais onde foi aplicada, uma aparente redução de casos, ao menos casos com hospitalizações — afirma. — Mas, infelizmente, para grande parte da população, isso não terá nenhum impacto. É uma situação que espero que seja urgentemente revertida.

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A epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI), diz crer que a Anvisa atuou no tempo correto na análise do pedido de registro, mas isso não garante o acesso ao imunizante. Um dos fatores que o governo alegou para não fechar contrato foi o desacordo em relação a cláusulas no contrato de oferta que buscariam oferecer proteção jurídica à Pfizer.

— Agora o governo precisa comprar, mas ele não tem mostrado interesse. Eu não entendo por que só o Brasil não aceita as cláusulas do contrato com a Pfizer. Por que só o Brasil tem restrições? Mais de 50 países aceitaram. Não conheço as cláusulas, mas acho difícil que sejam cláusulas diferentes — declara a ex-coordenadora do PNI.

Teoria da conspiração

O governo federal negocia a compra da vacina com a Pfizer desde o ano passado, mas não concorda com algumas das condições impostas pela empresa. O presidente, Jair Bolsonaro, e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, criticam principalmente a exigência de isenção de responsabilidade da empresa em relação a possíveis efeitos colaterais do imunizante.

Domingues explica que essa responsabilização, em situações normais e não de pandemia, sempre foi uma ação compartilhada entre governo e laboratório. Mas, ela diz, na situação atual, “por ser uma vacina nova”, com novo mecanismo, de RNA mensageiro, o laboratório queira se precaver. Mas, ainda de acordo com Domingues, não há motivos para se preocupar.

Para ela, esse tipo de vacina, utilizando RNA mensageiro, será o “futuro de todas as vacinas”, já que se mostrou um processo relativamente fácil de produção e de eficácia “elevadíssima”.

Diante disso, a forma como o governo se posiciona nas negociações com a Pfizer, ao não aceitar a cláusula que diz que o governo teria que arcar com efeitos adversos da vacina e não a farmacêutica, parece uma “teoria da conspiração”.

— É como se tivessem milhões de casos de efeitos adversos. Mas não é o caso. A vacina da Pfizer tem se mostrado segura e eficaz e não houve nenhuma morte por conta dela. Por que então esse receio? Tem se mostrado uma preocupação excessiva e infundada — acredita.

Dificuldades permanecem

Para a cientista Natália Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, o anúncio da Anvisa deve trazer pouca diferença na prática ao cenário de vacinação contra Covid-19 no país, que está lenta.

— As dificuldades vão continuar as mesmas porque o governo federal já sinalizou que não quer acordo com a Pfizer. O fato de a Pfizer ter sido aprovada pela Anvisa com o registro definitivo e de a gente ter um processo em trâmite no STF que busca colocar a iniciativa privada no jogo pode mudar o cenário para a sociedade, mas não para o governo — diz a cientista.

— A gente tem um grande portfólio de vacinas que poderiam ter sido alvo de acordos de compra pelo Brasil, mas o Ministério da Saúde não se mexeu para fazer isso. Eu sempre defendo o PNI, mas o PNI também não pressionou o ministério para ter vacinas para poder trabalhar. O PNI não pode fazer planejamento sem ter vacina ou sem saber quando elas vêm — diz Pasternak.

Para Dalcolmo, mesmo que o governo volte atrás e decida reatar negociações mais seriamente com a Pfizer, o problema do atraso na aquisição de doses não será resolvido facilmente, porque os primeiros lotes de produçao da empresa já estão comprometidos com outros países.

— Não fomos competentes para negociar e comprar no momento ideal. Essa encomenda deveria ter sido feito quando o teste estava na fase 3. Agora já não tem vacina. Não adianta agora a gente pedir 40 milhões de doses para a Pfizer porque ela não tem essas doses — afirma Dalcolmo.