SÃO PAULO - O Brasil ultrapassou hoje os Estados Unidos na média móvel semanal de mortes por Covid-19, o que não ocorria desde setembro do ano passado, quando os americanos começaram a viver sua segunda onda da doença.
Com 1.572 óbitos diários registrados na última semana e em tendência de alta, o território brasileiro agora é mais atingido do mundo pela pandemia, enquanto americanos vêem uma tendência de baixa, com 1.566 mortes semanais, segundo números compilados pela Universidade Johns Hopkins.
Na opinião de especialistas, a troca de posições na liderança de óbitos na pandemia é reflexo principalmente da mudança de atitude que ocorreu na transição do governo de Donald Trump para o de Joe Biden.
Enquanto o ex-presidente se consagrou por promover tratamentos infeficazes, questionar a eficácia do distanciamento social, evitar máscaras faciais e promover aglomerações em comícios e protestos, o atual alinhou seu discurso com as recomendações técnicas dos CDC (Centros de Controles de Doenças), que vivia as escaramuças com Trump.
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Segundo a epidemiologista brasileira Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, a posse de Biden envolveu uma "mudança radical de postura", e os EUA começam a perder agora as semelhanças que tinha com o Brasil.
— Eu acho que até a administração anterior aqui nos EUA, havia muitas semelhanças, como em negar a importância, em não fazer o que tem de ser feito e em fazer a coisa errada — disse a professora em entrevista ao podcast Ao Ponto. — A partir do momento em que a presidência Biden assume, a mudança é radical. Primeiro, a pandemia é vista como uma crise nacional e como algo que demanda ações, estratégias e respostas no nível federal. E outra medida foi dar valor as instituições do pais que tradicionalmente participavam de resposta a emergências e crises, como o CDC, o que seria equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil.
Vacinação faz diferença
Segundo especialistas, a agressiva campanha de vacinação dos EUA, que já aplicou 28 doses de vacina para cada 100 habitantes (contra 5 por 100 no Brasil), também pode estar fazendo a diferença em locais específicos e para alguns subgrupos da população.
Para microbiolista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e colunista do GLOBO, apesar de alguns estados americanos ainda não requerem uso obrigatório de máscara, a mudança de postura de Biden com relação ao tema fez diferença. O presidente expediu uma medida exigindo uso de máscaras em todos os aviões, aeroportos e edifícios federais do país.
— O simples fato de não existir mais um líder negacionista em relação à ciência na Casa Branca já torna as pessoas menos propensas a questionar essas medidas de prevenção e aderirem mais a elas — afirma Pasternak. — O Biden abraçou a ciência e colocou cientistas em cargos importantes no gabinete para desenhar a política contra a Covid-19.
Para a epidemiologista Gulnar Azevedo, professora da Uerj e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), uma medida importante de Biden para ajudar a frear a disseminação do vírus é o pacote de auxílio financeiro de US$ 1,9 trilhão, que inclui repasse de valores de auxílio emergencial para desempregados. A medida vai hoje a votação no Congresso americano e deve reforçar os apelos de por distanciamento social feitos pelo novo presidente.
— Aqui no Brasil existe uma quantidade enorme da população que precisa disso para se alimentar, mas o governo não esta cuidando disso — diz Azevedo. — Não existe uma campanha forte mostrando que este momento é gravíssimo e que só é para sair de casa em caso de última necessidade.
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Para a professora, ainda que o orçamento americano não seja comparável ao brasileiro, o auxílio emergencial nacional precisa ser ampliando para que se equipare ao de Biden em cobertura.
As especialistas consultadas pela reportagem afirmam que a pressão exercida por governadores e prefeitos pode surtir algum efeito contra a Covid-19 no Brasil, mas é improvável que tenham eficácia profunda se o governo federal não agir em conjunto.
— Este cenário já era completamente esperado, e coloca o Brasil numa posição de risco sanitário global — diz Pasternak. — Um país do tamanho do nosso com a pandemia descontrolada pode virar uma grande sopa de novas variantes preocupantes do vírus, e isso vai trazer consequências geopolíticas, sociais e econômicas.