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Saúde Coronavírus

Nenhuma causa de morte no Brasil supera a marca de 3.000 óbitos por dia da Covid-19

Coronavírus mata em um único dia o que o HIV leva 82 dias para matar; doenças cardiovasculares, todas juntas, demoram quatro dias para levar o mesmo número de vidas o que o Sars-Cov-2 levou nesta terça (23)
UTI do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo/18-03-2021
UTI do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo/18-03-2021

SÃO PAULO — O Brasil registrou nesta terça-feira (23) a marca de 3.158 mortes por Covid-19 , a maior desde o começo da pandemia. É a primeira vez que mais de três milhares de óbitos pela doença são notificados em um único dia no país.

Nenhuma outra causa de morte no Brasil mata como a Covid-19 matou neste dia. Mesmo as doenças cardiovasculares, as mais mortais no país, levam quatro dias, somadas, para matar 3.000 pessoas. As infecções respiratórias, todas juntas, levam 13 dias para matar o mesmo contingente, e a violência leva 19 dias.

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O dia de recorde ocorreu no pior momento da epidemia, e também empurrou para cima a média móvel semanal de mortes, que chegou em 2.349.


O Observatório Covid-19 BR, coletivo de cientistas que realiza monitoramento independente da pandemia, vê a tendência de mortes ainda em alta. O número de casos registrados da doenças (incluindo os não letais) e de registros por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) começa a dar sinais de estabilização e queda. Mas os números demoram a ser consolidados, e ainda possuem grande margem de erro.

Se esses números estiverem mesmo se atenuando, as mortes podem começar a diminuir dentro de duas semanas. No último dia, o país teve 84.996 pessoas diagnosticadas com infecção pelo novo coronavírus, uma tendência de aparente estabilização, apesar de estar num patamar alto.

Jovens e idosos

Segundo o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP, ainda não é possível dizer se o aumento no número de mortes vem acompanhado de aumento de mortes entre jovens e redução nos óbitos de idosos. O que se sabe é que têm aumentado como um todo. E o esgotamento dos recursos de saúde piora o cenário, segundo o especialista.

Se, em maio e junho do ano passado, cidades como São Paulo observaram aumento nas mortes por Covid-19 e redução nos óbitos por gripes e acidentes, por exemplo, hoje o colapso do sistema de saúde pode resultar em mais mortes por causas além da Covid, que não recebem a assistência devida. O estado de São Paulo registrou sozinho ontem 1.021 mortes só por Covid-19.

— É um horror. A doença hoje tem vitimado muitas pessoas entre 45 e 60 anos, que estavam no auge profissional, não davam custos para a saúde do Estado e contribuíam para a Previdência do país. Essas vidas estão sendo perdidas, bem como de jovens cuja sociedade investiu na formação e que se foram — afirmou Lotufo.

Para Maria Amélia Veras, professora de epidemiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, as mortes da Covid-19 por si só já fazem cair por terra o discurso contra medidas de isolamento para proteção da economia.

Mesmo que muitas das mortes se concentrem entre os mais velhos, essas pessoas dão contribuição importante para a economia.

— Muitos aposentados e pensionistas sustentam famílias. Isso é realidade principalmente nas faixas de mais baixa renda no Brasil — diz Veras. — Isso tem um impacto econômico, sem dúvida, também por causar perdas de estrutura familiar e arranjos que pessoas mais velhas ocupam, cuidando de netos e crianças para as pessoas mais jovens trabalharem.

HIV e vacinação

Não existe outra doença infecciosa no Brasil que chegue a matar perto do que a Covid-19 matou ontem. O HIV levou 82 dias para matar 3.000 de pessoas em 2019, por exemplo. A Covid-19 matou entre março de 2020 e março de 2021 mais do que a Aids vitimou desde 1996. Foram 294 mil mortes, contra 281 mil.

— A gente já suplantou todas as piores estatísticas que a epidemia de HIV e Aids teve tanto nos piores anos quanto no acumulado — afirma Veras.

Diferentemente do que ocorre com o HIV, porém, a vacinação para Covid-19 já começou, e pode ter impacto no futuro.

O Brasil conseguiu aplicar a primeira dose de vacina contra Covid-19 até agora em 12.793.737 pessoas (6,04% da população), e 4.334.905 já receberam a segunda dose, o que representa uma cobertura vacinal completa de 2,05%.

O três estados que mais avançaram agora em aplicação da primeira dose foram Amazonas (9,59%), São Paulo (7,94%) e Mato Grosso do Sul (7,62%). Os que mais estão atrasados são Pará (3,56%), Rondônia (3,65%) e Mato Grosso (3,90%).

— Em alguns poucos lugares está se observando já um decréscimo de letalidade entre as faixas etárias bem mais velhas, onde já teve vacinação substancial — diz Veras, da Santa Casa.

A esperança, segundo Lotufo, é que a vacinação seja bem sucedida e eficiente e, nos próximos anos, a mortalidade por Covid-19 seja tão reduzida quanto aquelas por sarampo foram no Brasil.

— Com o sarampo, praticamente acabamos com a mortalidade. Acredito que, no futuro, a mortalidade por Covid-19 será próxima a zero. O que poderão acontecer serão surtos localizados, contidos através de bloqueio vacinal — espera Lotufo.

Desigualdade

Para Gulnar Azevedo, epidemiologista da Uerj e presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o perfil da letalidade por Covid-19 no Brasil também escancara uma situação de desigualdade.

No Rio, que possui a população mais envelhecida do país, a letalidade de 5,6% da Covid-19 é superior às de São Paulo (2,9%) e Amazonas (3,5%).

Os dados, segundo a pesquisadora, mostram que os quase 300 mil mortos por Covid no país aproximam-se rapidamente dos 364 mil óbitos registrados pelo conjunto de doenças cardiovasculares em 2019, então principal causa de morte no país.

Na média de desde o início da pandemia, a Covid-19 ainda não mata tanto quanto as doenças cardiovasculares no Brasil. Mas a tendência é que a doença lidere o ranking de causas de morte.

Até 30 de janeiro, os dados mostram também que, no sudeste, a Covid-19 era a terceira causa de morte na região, representando 15,7% dos óbitos e antecedida por doenças cardiovasculares (27%) e câncer (18%). Na região Norte, a doença já era a protagonista das causas de morte, respondendo por 23% dos óbitos, enquanto as doenças cardiovasculares chegaram a 22,9%.

A tendência, segundo a pesquisadora, é que os números regionais sejam ainda piores de janeiro a março. A Covid-19 pode se tornar a principal causa de morte da população em 2021 se medidas mais duras de isolamento não forem adotadas, defende.

—  Uma média móvel acima de 2 mil mortes pela doença, como a que temos agora, é inaceitável. É mais de uma pessoa morta a cada dois minutos. A Covid-19 tem mostrado impacto enorme na mortalidade do país e medidas são necessárias. A pandemia está descontrolada e, se nada for feito, esperamos aumento expressivo nas mortes diárias por Covid —  alerta Azevedo.